“Para penetrar uma obra de arte nada pior do que as palavras da crítica, que somente levam a mal-entendidos mais ou menos felizes. Nem tudo se pode saber ou dizer, como nos querem fazer acreditar. Quase tudo o que sucede é inexprimível e decorre num espaço que a palavra jamais alcançou. E nada mais difícil de definir do que as obras de arte – seres misteriosos cuja vida imperecível acompanha nossa vida efêmera.” Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta
Inicio esse texto evocando o lugar essencial que a criação poética ocupa na vida de Antonio Brasileiro. Se a ele lhe fosse endereçada a célebre pergunta que Rainer Maria Rilke formulou na sua carta ao « jovem poeta » Frans Kappus, « Morreria se não me fosse permitido escrever?», a resposta seria certamente afirmativa. E seria (seguramente o é) poética. Criar é a maneira de ser do poeta-filósofo e artista plástico Antonio Brasileiro. Certamente a singularidade desconcertante que emana de cada um de seus poemas procede dessa entrega radical à experiência poética, em perfeita sintonia com o pensamento do poeta de Praga: « Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade: é a natureza da sua origem que a julga ».
A dupla condição de homem e poeta, verso e reverso do mesmo ser, inquietante lugar de uma identidade cindida entre a efemeridade da condição humana e a perenidade da arte, sempre constituiu uma preocupação fulcral da grande poesia, como podemos ler nas palavras de Rilke, reproduzidas na epígrafe acima, que ecoam no poema “Das coisas memoráveis”, de Antonio Brasileiro: “Um dia o mundo inteiro vai ser memória […] Eu, sentado aqui, / serei só estes versos que dizem haver um eu / sentado aqui.” Ou no poema “A dança e a alma”, incluído em Viola de Bolso de Carlos Drummond de Andrade, imenso escritor que marcou a produção de vários poetas no Brasil, inclusive a de Antonio Brasileiro: “No solo não, no éter pairamos, / nele amaríamos ficar. / A dança – não vento nos ramos: / seiva, força, perene estar.” Evidentemente, poderíamos reproduzir ao infinito os exemplos, mas não vem ao caso aqui; o certo é que toda uma tradição da poesia ocidental explora esse antagonismo entre finitude da condição humana e perenidade da arte, o logos como percurso iniciático da tentativa de ordenação do caos, itinerário compartilhado por Antonio Brasileiro.
Diferentemente de tantos outros « poetas », bem instalados no lugar comum, o ato de criar não é, para Antonio Brasileiro, um ato trivial. Fazer poesia não significa, para ele, juntar versos, tampouco implica num simples exercício estético. É um ato inseparável do seu inquietante estar-no-mundo que encontra sua razão de ser no desejo de escavar a impenetrabilidade do ser e do mundo, um ato inútil – porque o enigma persiste para além das revelações fugazes -, mas sincero: « Meus versos são da pura essência / dos poemas inessenciais” escreve em “Arte poética”. Dessa aporia nascem os mais humanos e belos poemas de Antonio Brasileiro: « A tudo vi e meditei e clamo: / ó saber-se divino e ser só homem!” (“Estudo 123”). Nestes versos, a aguda capacidade de percepção do sujeito poético esbarra na impossibilidade de obter respostas que o situem face aos enigmas do mundo, assinalando o poder e os limites da experiência poética. À dificuldade de discernir o sentido do ser e do estar-no-mundo que servem de leitmotiv à elaboração de seus poemas, o poeta-filósofo dedicou os ensaios A estética da sinceridade (EDUEFS, 2000) e Da inutilidade da poesia (EDUFBA, 2002) aos quais recorremos, neste texto, com o objetivo de iluminar alguns aspectos da criação poética do autor, pelo viés de sua reflexão ensaística sobre a poesia.
Comentei, em um outro momento,1 a construção do pensamento poético de Brasileiro embasada na figura do paradoxo, que, em alguns poemas, se aplica em negar, ironicamente, a função, que desempenha, de procurar desentranhar o absoluto do real. A recusa (aparente) do sujeito poético, como constatei naquela ocasião, justifica-se pelo desassossego que dele se apossa. O tumulto que o invade o transforma em vítima da própria acuidade do olhar na percepção do mundo. No entanto, o poema se constrói e ao fazê-lo, afirma o que está negando, « porque não há estética sem dor. E, no entanto, toda obra de arte é uma libertação da dor », assinala o ensaísta Antonio Brasileiro seguindo a trilha de Aristóteles (Brasileiro :2000 :72). A experiência poética origina-se desse movimento dialético que, ao mesmo tempo que alimenta, devora o sujeito poético, tão bem expresso nos versos de Ferreira Gullar, « eu colho a ausência que me queima as mãos », com os quais a obra do poeta baiano encontra-se em sintonia.
Não é, portanto, de se estranhar que o paradoxo que alimenta a poética de Antonio Brasileiro inaugure o viés metadiscursivo de sua produção, imprimindo um estilo e delineando atitudes afetivas. Decorre daí, um certo caráter teatral que instaura um diálogo tenso com o destinatário, jogando com efeitos de distanciamento, ao exteriorizar de maneira ostentatória um pensamento aparentemente ilógico e contraditório (« O esquecimento é a memória mais nítida. Sabe-se / não saber. Sabe-se não ser”, “Se todas as verdades”) ou ao projetar a figura do sujeito poético como um ser de distinta cepa (« Eu, com meus poemas indevassáveis / vós, com vossas gravatas coloridas”, “Divisor de águas”). Num movimento oposto, procura despertar o processo de identificação com o interlocutor, através de atitudes afetivas marcadas por um lirismo intenso (« Amiga, / escrevo-te. / Para nada, talvez. Que é a poesia, / senão o não sabermos de nós mesmos, / o incorrigível jamais nos conhecermos!”, “Escrevo-te”). A linguagem poética de Antonio Brasileiro busca a palavra essencial, precisa, assumindo a função heurística de desvelamento e investigação dos fatos, mimetizando o mundo inacessível, profundamente marcada pelo convívio com a obra de Ernest Cassirer e de Heidegger, como revelam a leitura de seus poemas e ensaios:
A casa do Ser, sob cujo abrigo mora o homem (na famosa definição heideggeriana da linguagem) não parecia, portanto, nada sólida; qualquer vento estranho poderia ser uma ameaça. Dar corpo às formas de coisas desconhecidas – essa função que julgamos exclusiva dos poetas, no reino das palavras – é, em larga medida, arriscar-se a essas intempéries. (Antonio Brasileiro, A estética da sinceridade)
Correr o risco da aventura poética centrada no questionamento sobre a condição humana, interrogando a natureza profunda da existência, exige do sujeito poético a capacidade de desnudar-se (o homem diante de si mesmo), de desdobrar-se em múltiplas figuras, procurando situar-se nas suas relações com o Outro, ou encontrar seu caminho enquanto sujeito da história. A essa dimensão metafísica heideggeriana, voltada para o homem em suas estruturas existenciais, acopla-se uma indagação sobre um movimento de energia criadora que dá origem aos seres e às coisas, uma inquisição sobre uma ordem cósmica inacessível que a poesia procura incansavelmente desvelar. Daí, as múltiplas figuras do poeta (“Mas que adeus, Cavaleiro? / O de si mesmo? O da máscara / de si mesmo? O da triste figura / de si mesmo?”, “Cavaleiro” 26.) e os diferentes caminhos percorridos na tentativa de “dar corpo às formas desconhecidas”.
O Poeta-Cavaleiro não está sempre a deslocar-se fisicamente, a agitar-se pelas estradas e mares enquanto sujeito agindo para mudar o mundo, perscrustando o sentido da historicidade. Outros percursos são evocados para se situar diante do mundo, sendo o ato de contemplar, um dos privilegiados pelo sujeito-poético: “Ser como um buda e não ter mais tédio / – eis como hei de ser. / Canções no bolso e um ar revolto. / Minhas irmãs dirão que estou fugindo / minhas amadas dirão que fiquei louco / / mas os amigos bem sabem: não perdi / nem estarei perdido – / ausculto o mundo do alto da minha torre.”, “O Estilita”.
A solidão do poeta que se traduz no seu afastamento do convívio social surge como condição privilegiada favorecendo a observação atenta e lúcida do mundo, como se para melhor decifrá-lo fosse necessário dele se abster. O Poeta-Estilita dedica-se ao ato de contemplar como um caminho imprescindível para alcançar um certo “sentimento do mundo”, o preço a pagar para especular sobre as verdades multiformes do real. Nesse sentido, ele se diferencia do homem-comum, propondo uma outra forma de habitar o mundo. Mas o poema é também uma forma de incitar o leitor a abandonar a rotina e ir além dos limites do visível, penetrando num universo inesperado ao qual ele só pode ascender através da palavra poética.
O Poeta-Estilita é também o Poeta-Sísifo, incansável no seu persistente e obsessivo meditar sobre as coisas do mundo para traduzi-lo em palavras, contribuindo assim para perpetuar, no presente, um ato que se perde na memória ancestral do homem, a exemplo do poema “O mundo, que deste pequeno quarto vejo e não compreendo” que se constrói apesar do mundo, contra o mundo, para o mundo. Constitui a um só tempo, um ato de desespero e de esperança, de maneira semelhante a esses versos extraídos de “Rutilância”: “pois tudo é rutilância e nós, passantes, / com nossa pressa e gula / para nada. / Mas justo porque o mundo é mesmo imenso / e imensa é a alma, / eis que escrevo e escrevo e escrevo e escrevo. / Por certo, para nada. Sim. Por certo, para nada” Em “Rutilância”, o ato de escrever está relacionado com o tema da passagem inexorável do tempo expondo a precariedade da condição humana. O logos tentando ordenar o caos: escrever para domar a morte, para permanecer, num ato insano que encontra sua fundamentação no desejo vão de exorcizá-la, pela iluminação da palavra poética que também tem o poder de revelar ao homem sua complexa composição. É o caso de “Estudo 165”, um dos mais emocionantes e bem construídos poemas de Antonio Brasileiro do qual reproduzimos os últimos versos: “compor um homem / da criança que há no homem, do homem / a adivinhar-se em antiquíssimas retinas; / compor um homem / com seus soluços, gramáticas, teogonias / – e recitá-lo perante os outros homens.
“Estudo 165” é, a meu ver, um dos mais belos poemas escritos em homenagem à experiência poética como forma de desvelar a complexidade do ser humano e ao mesmo tempo de exaltá-la. Um poema de celebração ao fazer poético atravessado por uma intensa carga lírica. A figura do poeta não duvida do poder do seu ofício: magnânimo, como um deus, ele cria a sua criatura, num instante de “rutilância”. Poema epifânico que celebra a magia da poesia: “todos os poetas não visam senão ao diálogo mais amoroso. Há que mostrar o homem ao homem, creem eles. (Brasileiro: 2000: 28).
Múltiplos são os registros do discurso poético de Antonio Brasileiro, diversas as formas que assume. O poeta exprime-se em textos mais longos ou minimalistas, imprimindo à sua poesia um tom melancólico e comovente (“Não passar. Ficar para semente. / Não era isto que meu pai queria? / Sentava-se na rede e adormecia / julgando ter domado a dama ausente.”, “Que Deus guarde meu pai”) intensamente lírico (“Furtava as cores de todas as paisagens / que colhia. / Um dia morreu / e um arco-íris bebia / seus olhos.”, “Loucura e poesia”) ou, ao contrário, adotando o humor, a ironia amarga, o tom provocador e iconoclástico para subverter a banalidade do olhar sobre a realidade do universo propondo insólitas e lúcidas visões sobre o real. Assim é que, é possível observar a transformação da figura do Poeta-Estilita em Poeta-auto-exilado no momento em que a contemplação serena cede lugar à ironia amarga, em poemas que encenam a violência cega das guerras e do terrorismo (“Governo e terroristas / defrontam-se na avenida”, “Visões dos anos 80”), ou a atmosfera asfixiante da ditadura militar (“O olho verde da cadela dorme. / E vela”, “Estudo 91”). Num poema recente, “Relato”, percebe-se a opção por uma dicção poética capaz de marcar, de maneira contundente, a rejeição do Poeta-auto-exilado à nossa caótica temporalidade. Colocando-se como testemunha malgré lui do seu tempo, adota a descrição realista como recurso para expor a natureza cruel das imagens traumáticas das catástrofes e violências que devastam o quotidiano do homem urbano contemporâneo. Reproduzo apenas seus versos finais: “É quando de um furgão descem soldados / a metralhar os bichos / e os homens e as crianças e os turistas / e os jornalistas e os motoristas e as vidraças. / Desta janela o mundo é confortável; / não ponho a cara de fora, / só relato.”
O discurso objetivamente mimético de cenas da vida urbana de “Relato” (2011) inaugura, surpreendentemente, uma atmosfera surreal. Ele expulsa o “diálogo amoroso” que o sujeito poético sustenta em “Estudo 165” (1974). Ao compararmos os dois poemas observa-se que a “torre de marfim” na qual o poeta se refugia não traduz a mesma disposição lírica: não se trata mais de “recitar”, mas de “relatar” o homem. Em “Estudo 165”, o Poeta-Estilita quando ausculta o mundo do alto de sua torre imagina-se fazendo parte dele enquanto que em “Relato” o sujeito poético se distancia, protegendo-se, rompendo qualquer possibilidade de identificação com o universo bestial que erige nos seus versos. A opção do registro prosaico no lugar do poético ajusta-se à realidade degradada revelada no poema, fixada nas imagens que expõem a mediocridade consumista, a violência estúpida que toma de assalto o quotidiano, o homem desumanizado, metamorfoseado em besta-fera. Dessa forma, o poeta compartilha um repertório de imagens que correspondem ao imaginário apocalíptico da contemporaneidade.
Esta antologia bilingue apresenta as múltiplas facetas de uma das vozes mais singulares da poesia brasileira contemporânea. A singularidade também é uma forma de reler, de reinventar a tradição, como bem demonstrou T. S. Eliot. O leitor poderá então descobrir as afinidades poéticas de Antonio Brasileiro, através do diálogo que, consciente ou inconscientemente, sua produção mantém com obras de grandes representantes da poesia ocidental como Rainer Maria Rilke, Paul Valéry, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto, Ferreira Gullar, seus pares, entre outros, na percuciente problematização do estar-no-mundo e/ou no fulgor dos momentos de epifania, em épocas e territórios diversos:
Vou cativar um beija-flor.
E sairemos por aí:
ele faz poesias, eu voo.
(“Concerto para flauta de canudo de mamão”)
Rita Olivieri-Godet
(Université de Rennes 2
Institut Universitaire de France)