Quem estava na área do self-service foi logo notando. O homem chegou com estrépito, manobrando com pressa e fúria para estacionar a caminhonete possante – uma L200 cabine dupla – na vaga estreita defronte à sofisticada padaria. Depois desceu batendo a porta – óculos escuros espelhados, camiseta falsificada do Clube de Regatas do Flamengo – e debochou do flanelinha, solícito e submisso, que ostentava uma camiseta puída do Vitória:
-Quero ver é quando seu Vitória vai enfrentar o Flamengo em Salvador para eu ir ver o jogo!
Foi empurrando a porta, os olhos ariscos farejando conhecidos. Ninguém. Então, enveredou para o espaço em que funcionava o self service. Mencionou aos berros a fome que o consumia – era quase meio da tarde – e catou prato e talheres com gula, avançou para as bandejas. Misturou lasanha com linguiça frita, feijão de caldo com batata frita, estrogonofe com farofa, salada de maionese com ensopado e panqueca. Despejou molho lambão e molho árabe, curvando o corpo para conferir o peso do prato na balança eletrônica, a pança projetando-se sob a camiseta apertada.
-Uma cerveja! Se tiver litrão, melhor ainda!
Ali não serviam litrão, comunicou a garçonete com polidez. Só long neck. Fez um muxoxo, requisitou um litro de Coca-Cola, com gelo e limão. Ofereceram uma lata, o sujeito permaneceu irredutível, uma das garçonetes atravessou a padaria para apanhar na geladeira o litro de Coca-Cola. Não estava gelado, exigiu que caprichassem no gelo, não bebia refrigerante quente.
-Veja palito para mim!
Debruçou-se sobre o prato com largas garfadas, o molho da lasanha escorrendo, o caldo do feijão transbordando, a farofa acumulando-se nos cantos dos lábios, os renitentes fios do macarrão sendo engolidos com sonora sucção. Num breve intervalo da mastigação, sorveu um gole largo da Coca-Cola. Suspirou feliz, arrotou, olhos marejados.
Ali perto, o jovem casal horrorizava-se – mudo – com aqueles modos. O rapaz, com óculos de aros arredondados, cabeleira revolta, dedicava-se a um capuccino que ia pela metade. Ela – esguia, pálida, cabelos curtos – sorvia, com goles breves, um mocha. Sobre a mesa, os comportados farelos de croissants, consumidos pouco antes. Lançavam olhares de esguelha para o flamenguista, que já destrinchava a coxa de galinha assada que submergira sob o feijão.
No canto junto à vidraça uma mulher de meia-idade e afetados modos de aristocrata – às vezes, traía-se com uma expressão matuta, roceira, no olhar – suspirava, inconformada. Talvez sonhasse com Paris, ou Londres, mesmo a Vila Madalena, sabe-se lá. Enfim, qualquer lugar que a poupasse daquela cena abjeta, o molho respingando na camiseta rubro-negra, reluzindo sobre a pança roliça.
-O feijão tava frio!
Reclamou o sujeito, finda a jornada. Mas suspirava, satisfeito. Aproveitou para – em goles largos – esvaziar a garrafa de Coca-Cola. Depois esticou as pernas e os braços, enfiou um palito na boca. O palito deslizava entre os dentes, era perito naquele movimento. Emitia sempre aquele som agudo de quem tenta, com a língua, desprender os fiapos de carne dos dentes. Por fim, assutou-se: o telefone celular, no bolso, manifestava-se, ecoava uma cantiga patriótica. Atendeu:
-Hein? Não, não… Olha… Veja… Não, eu não reconheço essa dívida, não – as feições eriçaram-se, hostis, às palavras da interlocutora desconhecida – Já liguei para vocês e disse que não vou pagar! Eu não reconheço essa dívida não, moça!
Ficou nervoso, esqueceu a comanda, resgatou-a, passou o cartão errado – sem crédito – no caixa, cancelou a operação, refez, o telefone sempre no ouvido, expressão irritada no rosto, tom indignado na voz. Embarcou na caminhonete, manobrou e saiu, o telefone ainda no ouvido.
Sobre a mesa que ocupara, o prato vazio, os ossos descarnados do frango assado. As testemunhas fitavam, mudas, distraídas, os despojos da refeição.
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