O episódio foi há quase duas décadas. Aconteceu em 2005, por aí, lá em Itaberaba. Mulherengo e beberrão, o cidadão resolveu regenerar-se, abandonar a vida desregrada que rendia falação na vizinhança, numa cidade miúda – não recordo qual – na Chapada Diamantina. À época, os primeiros fios de cabelos brancos começavam a despontar nas têmporas, precisava criar juízo. Passou, então, a frequentar uma igreja nas redondezas de casa. Certa manhã, chegou no trabalho, comentando:
-O pastor falou sobre Lúcifer. Disse que significa anjo de luz…
A imagem fascinara-o. Lúcifer não apenas era anjo, mas de luz, reluzia, irradiava divindade. Entusiasmou-se, tocou adiante aquele conhecimento – que agadanhara na leitura de versículos bíblicos – nas rodas de conversa na empresa. Um dos colegas – motorista – também se encantou com a expressão, que vinha a calhar: mortificava-o a escolha de uma expressão para o lameirão do caminhão que conduzia em extensas jornadas Bahia afora.
-Vou mandar pintar Lúcifer no lameirão! – Anunciou, enfático, contente com aquela revelação. Parecia coisa divina mesmo, ficara tempos aperreado com a dúvida.
Dias depois, aflito, o cristão neófito retornou a Itaberaba – trabalhava numa cidade próxima – alarmado. As lições bíblicas prosseguiram e soubera que Lúcifer, movido pela soberba, liderara uma rebelião contra Deus. Estava na Bíblia. Derrotado, foi expulso do céu. Tornou-se o diabo. Satanás. O tinhoso. Belzebu. E por aí vai. O colega que resolvera pintar o lameirão tinha que ser avisado:
-Ele está viajando. Mas já mandou pintar o lameirão – informou alguém.
Um ou dois dias depois o caminhão reapareceu, com o lameirão devidamente pintado. Pior: naquela de não se registrar a grafia correta em papel, o pintor equivocou-se, cravando lá: “Lucifé”. Curioso é que o erro de grafia revelou-se genial: uma mistura de Lúcifer e de Fé. Lúcifer e Fé. O cristianismo às avessas. Ou não. Coisa de consagrar poeta moderno, concretista. O motorista minimizou a pintura e o contratempo:
-Depois mando pintar de novo…
Bonachão, sorridente, resenheiro, confidenciou que a ideia repercutiu pelas estradas, gente buzinava, outros comentavam. Ficou lisonjeado, sorria com os elogios ao pintor, cidadão anônimo, perdido no interior da Bahia.
Aquilo rendeu boas risadas, diversas piadas e, aos poucos, foi se perdendo na memória. A pintura no lameirão persistiu, acumulando poeira e lama pelas estradas da Bahia. Quem não ficou feliz com as piadas foi o fiel recém-convertido, que farejava na galhofa contestações à sua conversão, à sua fé. Besteira: no remoto sertão baiano, aquela genial amálgama de palavras soou brilhante, mesmo sendo involuntária.
Testemunha daquele episódio pitoresco, registro aqui para resgatá-lo do ostracismo…
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