– Nós somos irmãos, porra! IRMÃOS! Há quantos anos a gente se conhece? Hein, Paulinho? Há quantos anos a gente se conhece? FALA AÍ, FALA AÍ! PORRA!
E apertava, efusivo, a mão do interlocutor. Os dois ébrios: a fala mole, trôpega, os gestos trêmulos, os olhos congestionados. Ao pé da mesa, garrafas vazias de cerveja. E ele recitando: “… somos amigos, porra…”. Os outros enfastiavam-se: um examinava, com ostensiva atenção, as garrafas enfileiradas nas prateleiras do bar. O outro espichava o olhar para a praça onde skatistas arriscavam manobras.
– A amizade aqui é sólida! SÓLIDA! Hein? Desde quando? Eu tava no Exército. A amizade aqui é SÓLIDA, SÓLIDA! Amigos de verdade! Caralho!
Ia se debruçando para reforçar o abraço e a cadeira amarela, plástica, se inclinava, ameaçando quebrar. O outro, absorvido pelo abraço grudento por causa da surrada jaqueta de couro, acrescentou, com voz pastosa:
– Lembra da Micareta? A Micareta de 89?
Aí ele se entusiasmou e até ajeitou o corpo para contar o episódio. A festa foi ali mesmo, naquela avenida, a Getúlio Vargas. Prestando serviço militar, foi recrutado para auxiliar na segurança, naquelas patrulhas. “Desci a ripa”, ressaltou, um pouco de baba pastosa escorrendo pelo canto dos lábios. O olho faiscou, radiante, tangendo um pouco a bebedeira. A próxima sentença exigia toda a solenidade:
– Mas só desci a ripa em vagabundo. Hein? SÓ BATIA EM VAGABUNDO! Pai de família, homem direito, NÃO! Só em vagabundo!
Aquela ladainha ia longe. Um aproveitou para examinar as mesas próximas: comerciários arrojavam-se sobre as cervejas na tarde radiosa de sábado; retardatários mastigavam, no almoço, vorazes, a carne que chiara na brasa de uma churrasqueira metálica; um ébrio fino e contumaz dedicava-se, enamorado, à dose cristalina de aguardente que repousava no copo americano sobre a mesa plástica, amarela, de uma cervejaria. Lá, do outro lado da rua, vans aguardavam os raros passageiros da tarde de sábado. Motoristas e cobradores aproveitavam para devorar pratos-feitos no minúsculo botequim da esquina. Da churrasqueira desprendia-se uma gordurosa fumaça azulada. Na mesa o outro abanava-se, fingindo atenção. O calor de fevereiro era abrasador.
– Sou empresário. Sabe? Empresário. Empreendedor! – O papo desembestara noutra direção.
E sacudia uma chave de carro sobre a mesa plástica. Mais: manuseava-a, empunhava-a, brandia-a, apontava-a como prenda para os interlocutores. E sorria, triunfante, quando notava que os olhares pousavam – distraídos – sobre aquele objeto. Fetiche. Sim, objeto de fetiche. Subitamente se voltou para o mais jovem, o que passeava o olho indócil pelas cercanias:
– Qual é a tua idade? Indagou, autoritário.
– Quarenta…
– Quanto?
– Quarenta!
Aquela idade contrariava a exposição que ruminava: jovem demais. Teatral, percorreu os semblantes dos demais. “E você, Paulinho? Você tem a minha idade!”, esbravejava, em tom de ameaça. O amigo dileto balbuciou, intimidado.
– Cinquenta e dois.
O efeito foi melhor. “E você?”, indagou. O que suava reagiu: “A mesma idade que você: 55 anos”. Aí ele descansou a chave sobre a mesa num gesto displicente. Espichou um silêncio que almejava suspense. Depois retomou:
– Em nossa idade não podemos vacilar! DEPOIS DOS 50 ANOS, VOCÊ NÃO PODE COMETER ERROS! Vida empresarial é assim! Percebem? Estamos na idade em que não podemos mais cometer erros!
Essa última frase o agradou. Repetia-a e pousava o olho em cada interlocutor. Media o efeito com a solenidade de consultor. A dúzia de cervejas sob a mesa, os gritos dos garçons comunicando pedidos, a rodada do campeonato inglês na tela do aparelho de tevê, as gargalhadas nas mesas próximas, o ir-e-vir de quem ia ao banheiro, os pregões dos ambulantes, nada disso tirava a seriedade daquela sentença. Doutrinava. O silêncio indiferente lançou-o à chave do carro.
– Você pagou o aluguel do cara? O cara alugou a loja dele e você ficou devendo – Fustigou o que suava, com um sorriso malévolo no canto do lábio. Embolada antiga, de anos atrás.
Aí ele estrilou. Encheu o peito de ar. Esboçou a expressão dolorida de quem sofre uma tremenda, uma brutal injustiça. Mas modulou a encenação, apostou na personagem madura, que aprecia a autocrítica, que reconhece suas limitações. Sempre impressionava.
– Aquilo foi no passado. Sei que errei. Mas se eu não tinha para pagar, o negócio não deu muito certo, o que você queria que eu fizesse? Me diga, qual a alternativa? Não tive como pagar e reconheço meu erro! Foi um negócio que não saiu como o planejado… – Minimizou.
Daí em diante o papo arrastou-se, insosso. Os silêncios constrangidos começavam a se impor, implacáveis. Um examinava, ostensivamente, as horas, no celular. O amigo bêbado requisitava uma aguardente com uma rodela de limão. O outro suava, esvaziava o copo de cerveja e enveredava pelo cenário político, espicaçava o sujeito, que empertigava o corpo, denotando a relevância de suas considerações.
– Vamos pedir a conta – Sugeriu o que suava, mais adiante.
Aí começou a lambança: o que emborcava aguardentes estava liso, não tinha como bancar seu consumo; o que se distraía chegou depois, desobrigava-se da divisão equânime, arcaria com a proporção do que consumiu; restavam ele e o que suava. Inquiria, acusava, contestava, escorregava, postergava, embolava.
– E o rapaz aí, vai pagar quanto? Paulinho, como é que você sai pra beber sem dinheiro? Eu não vou pagar tudo não, a divisão não está justa, não! – Reclamava, fingindo indignação.
Naquela balbúrdia brandia a chave do automóvel com gestos loquazes: aquilo funcionava como símbolo de distinção, de status social. Trançavam-se regateando dinheiro miúdo, mas ele se sobrepunha, distinguia-se daquela patuleia. Empresário. Sim, empreendedor. E tinha carro. Aquela canalha que se esbaldava no boteco, bebendo cerveja barata, comendo linguiça com feijão tropeiro quando sobravam uns trocados, não estava à sua altura. Enfrentava contingências passageiras, tudo bem, mas era empresário. Até os prestigiava ali, orientando-os, aconselhando-os de graça. Enfim, uns filhos da puta ingratos.
Pensou tudo isso enquanto esperava a saideira. Sim, tinham mandado descer a saideira e ele ia beber até o final. Agora suava com o casaco de couro, sob aquele sol de fevereiro. Tarde de sábado e ele atropelando o fim-de-semana, já projetando a manhã de segunda-feira, tinha negócios apalavrados, ia fechá-los, logo ia voltar ali, esbanjando, aqueles filhos da puta iam aprender. Enfim, despediram-se, foram saindo, o que suava e o desatento pretendiam beber a saideira ali nos quisoques que vendiam sanduíches no canteiro da avenida.
Foi saindo…
… na esquina, enfiou a chave do carro no bolso do casaco, vasculhou os arredores à cata de um moto-taxista. Chamou um que fazia ponto ali perto, requisitando-o com um gesto imperial. E pulou na moto, depois de enfiar o capacete como o general que enfia o adorno para a batalha…
… na mesa, o desatento observava-o, atentamente, com impiedosa curiosidade, enquanto o moto-taxista saía com a motocicleta numa arrancada abrupta…
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