… Acordou agitado pelo sonho que rendeu uma ideia genial. Olhou as luzes tristonhas da cidade pela janela do terceiro andar – a escuridão sinalizava que a madrugada estava distante de se desfazer -, bebeu um copo largo de água e tratou de ligar o computador portátil. Enquanto as luzes da tela se acendiam, recordou o sonho.
Foi soberbo: por túneis escuros, passavam metrôs luminosos, lançando-se ferozmente à frente, seus lombos metálicos reluzentes, a gente lá dentro, profusamente iluminada, aguardando ansiosa por suas estações. As composições deslizavam pesadas sobre os trilhos, o som muito agudo do atrito, rascante, insuportável para os ouvidos. Até ali, porém, era tudo muito banal.
Mas havia mais: agarrada feito náufraga à frente de cada metrô que passava, havia gente. Homens, mulheres, alguns de meia-idade, idosos, outros mais jovens. Todo mundo, porém, envergava camisetas amarelas com detalhes verdes nas mangas, calções verdes, calças verdes, um ou outro trajando azul, destoando um pouco. Estavam à frente de todos os metrôs, tentando impedir que avançassem.
Só que era gente diferente, não tinha aquela consistência de carne e osso dos seres humanos normais. Eram gelatinosos, grudavam como tenazes sobre o vidro, sobre a chaparia metálica dos veículos.
Fantásticos eram também os nomes das estações que iam alternando-se nos letreiros coloridos: “Sanidade”, “Equilíbrio”, “Responsabilidade”, “Democracia”, “Civilidade” e por aí vai. A gente gelatinosa tentava, desesperada, impedir que os veículos alcançassem suas estações. Aquilo tinha fino sentido literário, pensou. Até associou-o a “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams.
Sentou diante da tela e mandou ver, os dedos deslizando sobre o teclado e aquele som característico, que tanto o embalava, enchendo a sala silenciosa na madrugada.
O problema é que, quando começou a descrever as pessoas grudentas – viscosas, gordurosas, gomosas – uma sensação estranha o dominou. Parecia que o teclado adquiria aquela consistência grudenta também. No início, ignorou. Mas depois aquilo começou a enojá-lo, repugná-lo. Foi afastando os dedos, era impossível continuar, por fim abandonou o teclado gelatinoso. Pior ainda: o tampo de granito da mesa assumia a mesma consistência. Recuou, levantou, o asco crescente.
A madrugada estava fria, mas gotas de suor despontaram de suas têmporas. Sentiu sede, foi à geladeira. Nem abriu: a porta não tinha mais aquela consistência metálica, dura. Era gelatinosa. Recuou, horrorizado, nem bebeu a água. Aliás, tudo foi piorando: agora as roupas, o próprio piso da sala, afundava e subia, conforme se movimentava.
O grito de horror – dilacerante – reverberou pelas paredes.
Tirou a roupa num frenesi, lançou-a de lado, correu para a porta – chaves e maçaneta flácidas – abriu a saiu correndo pelado pelo corredor, o grito ferindo mortalmente o silêncio da madrugada…
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