Foi numa quase esquecida noite de 1991. O velho rádio na cozinha de casa tocou “ABC do Sertão”, antiga canção de Luiz Gonzaga em parceria com Zé Dantas. Confesso que nunca a tinha ouvido, mas os versos foram me absorvendo, assim como o ritmo empolgante do forró: “Lá no meu sertão pro caboco lê/Tem que aprender um outro ABC”. Depois a voz familiar desfiava o abecedário, sempre com a ênfase no ê: “o J é jí (…) o L é lê (…) o S é sí (…) o R tem nome de rê”.
Aquele abecedário cheio de ês foi o que aprendi na minha remota infância: primeiro em casa, em Serrinha, instruído por minhas irmãs; depois numa banca, na mesma cidade sertaneja, em que avancei voraz na alfabetização para, por fim, percorrê-lo com intimidade no então Grupo Escolar Coriolano Carvalho, já na Feira de Santana, ali na feirinha do Sobradinho, que tanto menciono.
Nos horrorosos livros de alfabetização da ditadura militar – o papel pardo, vagabundo, atestava o apreço que o regime alimentava pelos filhos dos pobres – a turma tentava controlar os lápis desobedientes, insubmissos, garatujar o próprio nome. O esforço envolvia também decifrar e conectar as letras para avançar na leitura.
Alguns – tipo eu – no esforço contínuo, desenvolveram calos nos dedos. Lembrava, então, da observação de alguém: melhor calo de escrita que calo de trabalho pesado. Menino, não atinava para o sentido da frase. Limitava-me a examinar e a lastimar a pele machucada. Mas foi desconforto curto: logo o calo ganhou consistência, literalmente calejou.
Naquela faina, o sotaque baiano – sertanejo – da garotada ganhava os ares na sala escura, abafada, arejada e iluminada só por cobogós – conheci-os como comungós: é, fê, guê, jí, lê, mê, nê, rê, sí… Recordo bem que já não pronunciávamos pissilone ou ipissilone, conforme o cabôco mais antigo. Era ípsilon. Prenúncio do que viria nas décadas seguintes.
Na televisão notávamos diferenças, pois as pessoas utilizavam um alfabeto diferente. O é era ê – falávamos é, exceção entre tantos ês – e havia o esse, o jota, o eme, o ene, o erre e por aí vai. Soube que, hoje, na educação infantil, abandonou-se aquele delicioso abecedário todo sertanejo. Ingenuamente supunha que resistiria, mas a hegemonia cultural do Sudeste acabou prevalecendo.
Anos atrás conversei longamente com um filho de portugueses. No meio do papo, o abecedário veio à tona e, aí, lancei mão dos meus conhecimentos. O sujeito ficou encantado. Disse que, lá em Portugal, empregava-se o abecedário de maneira similar, lastimava não ter aprendido da mesma maneira. Pediu e novamente pediu para que eu recitasse letra por letra: estava fascinado, resgatando lembranças paternas, quase esquecidas. Até recomendei que ouvisse a canção de Luiz Gonzaga.
Nem sei por que essas lembranças ressurgiram neste dezembro de pouco sol, chuvas persistentes e frequentes nuvens cinzas, plúmbeas, no céu. Talvez só para reafirmar que, cabôco, aprendi outro abecê. O fato é que o abecê sertanejo permanece muito vivo na memória e vira-e-mexe, ele evoca o eu-menino, para pegar emprestada uma expressão do poeta Manuel Bandeira, ele também nordestino…
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