“Deus me deu pernas compridas/E muita malícia/Pra correr atrás de bola/E fugir da polícia”. (Partido Alto, de Chico Buarque)
Coube a um jovem pedreiro negro de Feira de Santana o ensinamento mais claro, simples, direto, verdadeiro, inconteste e contundente sobre como parar a escalada da violência policial na Bahia. Em apenas uma semana, entre 28 de julho e 4 de agosto, 32 pessoas foram mortas em confrontos com a polícia, colocando o Estado nas manchetes da imprensa nacional e gerando condenações e manifestações de repúdio de organizações e ativistas de direitos humanos.
– Eu estudo para ser policial e conheço a Constituição. Vocês não podem entrar aqui. Minha casa é asilo inviolável – bradou o pedreiro Nailson Santos da Silva, de 30 anos, peitando uma guarnição de policiais militares que queriam entrar em sua residência, supostamente para prendê-lo.
O crime de Nailson, apontado por um dos policiais: ele havia corrido e entrado na própria casa ao ver a viatura policial chegando. O pedreiro negou que estivesse correndo. Explicou que estava na frente da casa, usando o telefone e entrou, sem mesmo perceber a chegada do carro da polícia. Nada adiantaram as explicações. A atitude foi considerada suficiente pelos policiais para transformá-lo em um perigoso meliante.
É aqui que nos deparamos com um caso claro de violência desnecessária – o pedreiro teve a camisa rasgada por um policial, que tentou puxá-lo para fora da casa, e recebeu um golpe dado com um fuzil – e de racismo institucional, representado pela inequívoca prática de um antigo ditado de cunho racista, segundo o qual “branco correndo é atleta e negro correndo é ladrão”.
Nailson, contudo, foi firme. No interior da casa, em frente à porta, barrando a entrada dos policiais, orientava a mulher a continuar gravando a cena com o telefone celular, enquanto proclamava seus direitos constitucionais. Ao lado dos dois filhos pequenos, a mulher registrou tudo com o telefone. Segundo o pedreiro, ficou fora da gravação apenas o momento em que um dos policiais o tirou da frente da câmara e disse: “Dê uma queixa e amanhã você vai ver o que acontece”.
Ele, porém, não se intimidou e prestou queixa contra os policiais militares à Polícia Civil e à Corregedoria do Comando de Policiamento Regional do Leste, por abordagem truculenta, invasão de residência e agressão. Contudo, temendo a prometida represália, abandonou a casa e está morando com a família em outro local.
A firmeza do pedreiro contrasta com a demora do governador Jerônimo Rodrigues, que levou mais de uma semana em silêncio e só se pronunciou sobre as mortes nas operações policiais, prometendo apurar casos de eventual excesso, após o ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, assumir a frente do palco e determinar formalmente à Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos que acompanhe as apurações do caso e ouça autoridades e a sociedade civil.
Intervenções policiais que resultam em números expressivos de mortes não são compatíveis com um país que se pretende democrático e em consonância com os Direitos Humanos, disse o ministro. Uma clara manifestação de censura do governo federal ao que está acontecendo na Bahia. Ou será preciso desenhar?
Silvio Almeida sabe do que está falando. Negro, jurista e filósofo, com mestrado e doutorado em direito, ele é tido como um dos maiores intelectuais brasileiros da sua geração. Especialista em direitos humanos e relações raciais, tem vários trabalhos publicados nessa área, especialmente sobre a origem e as dimensões do racismo estrutural no Brasil.
Não se sabe, em detalhes, o que o ministro disse ao governador, nem o que dele ouviu na conversa que tiveram na semana passada. Mas é quase certo que Silvio Almeida repetiu o que disse a propósito de episódio semelhante ocorrido na mesma semana em Guarujá, na Baixada Santista:
“É preciso um limite para as coisas. Então eu acho que o limite para isso é o respeito aos direitos humanos, seja para os agentes da segurança, seja para a população dos territórios onde a polícia atua.”
Na essência, a mesma coisa que disse o jovem pedreiro de Feira de Santana aos policiais que o intimidaram: respeitem os direitos garantidos pela Constituição.
José Carlos Teixeira jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador