Nos anos 1980 a área da feirinha do Sobradinho era mais aberta. Não havia aqueles boxes contíguos à Escola Coriolano Carvalho, nem o mercado que hoje abriga os comerciantes de carne. Naquele tempo, o que havia era dezenas de barracas de madeira que, aos domingos, acolhiam os açougueiros que, com facões e peixeiras, mercadejavam a carne verde disposta sobre papelões.
O espaço, portanto, era amplo e a feirinha conectava-se ao campo de futebol que abrigava os babas da rapaziada do entorno e as aulas de educação física do Coriolano Carvalho. Assim, a amplitude e a manhã ensolarada de sábado permitiram ver a cena seguinte com clareza.
Sob as barracas havia mais de uma dezena de garotos que, subitamente, começaram a gritar com animação – ÊÊÊÊÊÊ !!! – enquanto dois deles desapartavam-se do grupo, avançando sobre o descampado e agitando a poeira com pés ariscos. Parecia uma dança, esquisita, mas era briga.
Pior que a briga era bem desigual. Um apenas recuava, de costas, punhos em guarda, tentando aparar os golpes do adversário; este desfechava uma impressionante sequência de socos que atingiam o ar ou as mãos já abertas daquele que recuava. Aos poucos o agressor foi encurtando a distância, impiedoso, implacável, feito um titã mirim.
O desfecho se deu já com a plateia disposta num arco, excitada, em torno dos dois pugilistas. A distância entre ambos se reduziu o suficiente para o agressor desfechar uma série vertiginosa de socos no rosto do adversário, que se limitava a manter as mãos erguidas, pateticamente.
Vínhamos de lá – eu e meu pai – quando a refrega começou. Resoluto, meu pai apressou o passo e, com agilidade, separou os contendores, que não tinham mais do que nove anos, empurrando cada um numa direção.
– O que é isso, rapaz? Como é que você faz isso com o outro? – Meu pai repreendeu o que esmurrara o adversário.
O agressor replicou, tranquilo, sorridente, com um gesto adulto e uma explicação singela:
– Eu não queria brigar. Ele ficou me chamando para ‘sair na mão’, eu fui e ‘estourei’ ele, né?
O que fora surrado chorava copiosamente, lágrimas rolando pelo rosto; perdera um dente e, do ferimento, jorrava sangue em profusão, banhando seu dorso nu. Não houve nenhum gesto solidário, mas alguns garotos acercaram-se do que apanhara, pesarosos.
Cauteloso, observei tudo em silêncio. Conhecia todo mundo, todos moravam nas cercanias. Temido – tinha fama de louco no Sobradinho – o agressor não viveu muito mais tempo depois daquela briga. Meses à frente, numa traquinagem infantil, subiu numa mangueira; lá no alto, sofreu uma crise epiléptica – era epiléptico – despencou da árvore e morreu.
Disputei muitos babas pelos campos de várzea do Sobradinho com o que fora surrado, nos anos seguintes. Não diria que firmamos uma amizade, mas houve uma convivência prolongada. Pois, temperamental, estourado, não viveu muito. Décadas depois, soube que foi assassinado quando mal chegara à vida adulta.
Quase quatro décadas depois, relembro o episódio, que deveria ter se perdido no fundo da memória. Redijo a recordação numa manhã cuja luminosidade é, curiosamente, muito semelhante àquela da briga e fico pensando nos misteriosos desígnios da vida…
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