Começo de tarde, sexta-feira. 14 horas, por aí. Sol, luminosidade, vento úmido. Clima agradável. No calçadão da Sales Barbosa, burburinho: mulheres indo com embrulhos, homens voltando com embrulhos, gente anunciando promoções imperdíveis nas portas das lojas, ambulantes apregoando seus produtos – “água, água” –, crianças, idosos, adultos, o ir-e-vir incessante sobre os bloquetes do piso intertravado.
Na Capitão França, palitar de dentes, garfadas vorazes, a primeira cerveja da sexta-feira, contas quitadas. Risos, vozes, interjeições, gestos largos. Mais passantes, o ir-e-vir não cessa, os olhares espichados para os produtos expostos nas vitrines das lojas, também não. Bandeirolas, muitas bandeirolas: vermelhas, amarelas, verdes, azuis. É o São João chegando.
São João chegou, mesmo, foi no cruzamento da Capitão França com a Senhor dos Passos. Ali também a gente ia e vinha, apressada, evitando os carros na faixa de pedestres, apressando os passos nas calçadas. Afinal, como São João chegou? Pelos alto-falantes, com a típica sonorização dos períodos festivos:
“Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô”
Soaram os primeiros versos de “Assum Preto”, de Luiz Gonzaga. Música dele e de Humberto Teixeira. Os letreiros chamativos das lojas, os produtos coloridos, os sorrisos de quem vende e de quem compra, luzes refletidas sobre os lombos dos automóveis, o sol do maio que findava, tudo recendia a vida, contrastando com aquela canção tristíssima. Mas ela seguiu em frente:
“Mas Assum Preto, cego dos óio
Não vendo a luz, ai, canta de dor”
Caixas de som nas portas das lojas – o nordestino só mercadeja com música, não há silêncio em seus centro comerciais – tocavam forrós diversos, tentando atrair a clientela. Mas Luiz Gonzaga prosseguia, a sanfona chorando que era uma beleza:
“Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió”
Entretida nas compras, a gente que passava ignorava Luiz Gonzaga, sua sanfona, o drama comovente do Assum Preto. Era necessário avançar, atravessar a Senhor dos Passos, pesquisar preços, preparar-se para os festejos juninos. Para tanto, ignoravam Luiz Gonzaga, cujo canto sofrido talvez até profanasse a tarde de sexta-feira:
“Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió”
Ali no Lambe-Lambe a canção aproximava-se do fim. A mesma indiferença por Luiz Gonzaga nos carrinhos-de-mão que ofereciam frutas, verduras e legumes e, também, os ingredientes dos bolos juninos, o amendoim que o feirense consome o ano inteiro, mas mais ainda em junho:
“Assum Preto veve sorto
Mas não pode avuá”
Com os últimos acordes, antigas lembranças juninas foram se desfazendo, retornando ao fundo da memória. O gatilho que as disparara – entronizando o São João – findava, já no Beco da Câmara, repleto de automóveis, de gente, de bicicletas, de motos. Os versos mais profundos, no entanto, persistiram na cabeça, sustentando o fio das lembranças de remotos períodos juninos:
“Mil vez a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá”
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