“Adeus ribeirinhos dourados./Adeus estrelas tangíveis./Adeus tudo que é de Deus./Deram um fuzil ao menino”. (Deram um fuzil ao menino, de Firmino Rocha, poeta grapiúna)
Na sede da Organização das Nações Unidas, em Nova York, uma placa de bronze exibe os 17 versos do poema “Deram um fuzil ao menino”, do baiano Firmino Rocha (07/06/1910 – 01/07/1971). É um duro protesto pela brutalidade da guerra – mas, ao mesmo tempo, enternecido pela suavidade das referências à infância. (Veja o poema completo no fim desse artigo).
O poema me foi apresentado em Itabuna, em meados dos anos 1990, pelo saudoso jornalista Manoel Leal, que anos depois se tornaria também vítima de brutal violência: foi assassinado com seis tiros pelas costas quando chegava em sua casa, em um suposto crime de mando, até hoje não devidamente esclarecido.
Os versos do poeta grapiúna me vieram à mente por volta do meio-dia desta quinta-feira, 5, preso em um enorme congestionamento de trânsito no trecho da Rodovia BA-523 que corta a cidade de Candeias, na Grande Salvador.
A lembrança do poema não foi provocada pelo engarrafamento em si. Afinal, quem mora em Salvador já aprendeu a conviver com as constantes e súbitas retenções do trânsito que às vezes transformam as ruas da capital baiana em uma sucursal do inferno.
Os versos de Firmino Rocha vieram à minha mente pela causa do engarrafamento: um desfile escolar que tomava parte da já estreita pista da rodovia, provavelmente relacionado às comemorações da Independência, neste sábado.
Só que não era um desfile escolar qualquer: parte dos jovens estudantes do Colégio da Polícia Militar em Candeias desfilavam garbosamente conduzindo velhos fuzis nos ombros. Mais pareciam briosos soldados marchando para a guerra.
Os sorrisos adolescentes que exibiam, porém, não eram suficientes para esconder a brutalidade da cena. Afinal, em que grau de civilização se encontra a Bahia, onde jovens são educados de armas na mão? Em que grau de democracia nos encontramos se aceitamos que em algumas de nossas escolas armas se misturem aos livros como se material escolar fossem?
É, no mínimo, temerária, essa mistura estranha em um Estado que registra elevado grau de mortes por armas de fogo e cuja polícia é campeã nacional de letalidade.
E não me venham dizer que eram armas velhas, obsoletas, já incapazes de disparar. O que vale mesmo é o fato. Sua excelência, o fato, como o definia o igualmente saudoso Ulisses Guimarães. E o fato é, como no poema de Firmino Rocha: puseram um fuzil na mão do menino.
DERAM UM FUZIL AO MENINO
Adeus luares de Maio.
Adeus tranças de Maria.
Nunca mais a inocência,
nunca mais a alegria,
nunca mais a grande música
no coração do menino.
Agora é o tambor da morte
rufando nos campos negros.
Agora são os pés violentos
ferindo a terra bendita.
A cantiga, onde ficou a cantiga?
No caderno de números,
o verso ficou sozinho.
Adeus ribeirinhos dourados.
Adeus estrelas tangíveis.
Adeus tudo que é de Deus.
Deram um fuzil ao menino.
José Carlos Teixeira – É jornalista, graduado em comunicação social pela Universidade Federal da Bahia e pós-graduado em marketing político, mídia, comportamento eleitoral e opinião pública pela Universidade Católica do Salvador