O azul da tarde de sábado só não era impecável porque havia ameaça de chuva, uma dessas tempestades que desabam no verão do Sudeste. Deixara minha irmã na estação das barcas para Niterói e voltava pela Praça XV – vazia de passantes – já dobrando o Largo do Paço. Este conduz à Rua da Assembleia, que, por sua vez, desemboca no Largo da Carioca e na estação de metrô. Pois bem: ali na quina do Paço Imperial me deparei com o dorso da foto e com o carimbo: “Última Hora”.
Avancei mais alguns passos e, então, retornei. A fotografia descansava à margem de uma sarjeta. Caso a tempestade que ameaçava cair sobre o centro do Rio de Janeiro se confirmasse, a relíquia seria arrastada pela torrente. Recolhi-a, sob o olhar indiferente de dois desocupados que proseavam, saboreando cigarros.
Li, atônito, todo o conteúdo do dorso. Logo abaixo do “Última Hora” era possível verificar que a foto compunha o acervo do Departamento Fotográfico do histórico jornal, já extinto. Embaixo vinha – escrita com caneta – a identificação da repórter e do fotógrafo, Wanderson Fernandes. Por fim, a data: 10 de novembro de 1989.
Acima, datilografada, aquela clássica identificação comum das fotografias em papel dos antigos jornais impressos: “Hospitais-RJ. Hospital Souza Aguiar. Nov.89 Inauguração da Emergência do Hospital. Marcelo Alencar (Prefeito do RJ)”. Só então examinei a fotografia propriamente: identifiquei o ex-prefeito carioca e, a um canto, talvez estivesse Cristina, a repórter escalada para aquela cobertura.
Estupefato, me perguntei o que aquela fotografia fazia ali, abandonada no centro do Rio de Janeiro. Na Praça XV, nos finais de semana, funciona uma feira de quinquilharias. Imagino que, no começo, vendiam por lá objetos antigos, como candelabros e castiçais, relíquias do passado imperial e das primeiras décadas da República.
Depois – calculo – a feira ganhou musculatura e, hoje, vende-se uma infinidade de coisas, impossível de enumerar. Talvez, então, alguém tenha conseguido acesso a parte do acervo do Última Hora e resolveu vendê-lo por lá. A foto, por alguma razão, desgarrou-se. É o que especulei, examinando os semblantes da fotografia, daquela inauguração que aconteceu quatro dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais de 1989.
Ironicamente, a poucos metros de onde resgatei a fotografia, há um marco alusivo à primeira fotografia colorida registrada no Brasil, de autoria do fotógrafo Marc Ferrez. Mas isso é História. História, aliás, que talvez esteja sendo negligenciada em relação ao acervo do Última Hora, que, em grande medida, conta parte da historia da imprensa brasileira e, em última instância, do próprio Brasil.
Desde minha já distante juventude leio sobre o Última Hora, jornal fundado pelo jornalista Samuel Wainer em 1951. A publicação, inclusive, teve um papel destacado na resistência à ditadura militar e, em 1971, foi vendida por Wainer, então exilado na França. Sucessivos proprietários assumiram o periódico, que fechou as portas em 1991. Apenas dois anos após a foto que motivou esse texto.
Tentei encontrar a versão digitalizada do jornal naqueles dias para conferir a matéria, mas não consegui, perdido nos imprecisos caminhos da Internet. Poderia guardar a fotografia como souvenir, relíquia daquela afamada publicação carioca, mas não vejo o achado dessa maneira.
É que, no fundo, o episódio faz refletir sobre os destinos dos acervos de incontáveis jornais brasileiros, boa parte deles já extintos. Aqui, na Feira de Santana, existiu o Feira Hoje, que durante 27 anos noticiou parte da história feirense. Sei que parte do acervo dele está no Museu Casa do Sertão, na Uefs. Haverá outras cópias? Existirá alguma coleção em formato digital? São questões que intrigam, há muitos anos, quem viveu o dia-a-dia daquela redação…
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