Faz tempo que a mistura entre religião e Estado se manifesta na Câmara Municipal da Feira de Santana, embora a questão só venha ganhando mais exposição na imprensa a partir da atual legislatura. Pesquisando os arquivos digitais do Legislativo, descobri algumas leis a partir do já bem distante ano de 1984. Naquele período, por exemplo, a resolução 153/1984 dispunha sobre a “entronização da Bíblia Sagrada no plenário da Câmara Municipal”. Segundo a tal resolução, a bíblia seria “mantida em destaque, sobre a Mesa Diretora dos Trabalhos Legislativos”.
Hoje, o parágrafo segundo do artigo primeiro – a resolução é bem simples, conta com apenas três artigos – renderia caudalosa polêmica: o exemplar da Bíblia Sagrada autorizado para aquisição seria o comemorativo à visita do para João Paulo II ao Brasil. Até então, o livro sagrado apenas comporia o cenário onde os parlamentares travavam seus embates.
Foram necessários dez anos para que o tema voltasse a ser remexido: a resolução 310/1994 alterava a anterior, acrescentando um parágrafo ao artigo primeiro: “Na abertura de cada sessão, o Presidente da Câmara determinará a leitura de um dos livros da Bíblia Sagrada”. Até aquele momento, os vereadores legislavam sobre bíblia apenas no âmbito restrito das sessões parlamentares.
Demorou mais 14 anos, mas a situação mudou: em 2008, a lei 2893 “autorizava” o Executivo a disponibilizar exemplares da bíblia “nos acervos das bibliotecas públicas e das unidades bibliotecárias da rede municipal de ensino”, conforme reza, textualmente, o artigo primeiro. Não bastava, no entanto, disponibilizar, já que os exemplares deveriam estar em “local visível e de fácil acesso público”.
Perigoso
É perigoso infringir essa determinação: “É vedado restringir, proibir ou limitar o acesso”, diz o artigo terceiro, que lá adiante arremata sujeitando os infratores à “responsabilização penal, civil e administrativa, na forma da Lei”. Logo, o Executivo não apenas tem que adquirir bíblias, como deve disponibilizá-las facilmente nas depauperadas bibliotecas públicas; quem não o fizer, enfrentará um magote de dissabores jurídicos.
Mas a coisa não parou por aí: em 2011, foi instituída a “semana da cultura evangélica”, através da lei 3210, daquele ano. Curiosamente, a lei institui a semana, incorpora ao calendário do município, mas, supostamente, não passa disso, já que cabe às próprias igrejas promover suas atividades, sem interferência do poder público. Pelo menos é o que se deduz.
Mas não é tão simples assim: quem pretender participar deve se inscrever junto a uma associação que, além de organizar a programação, deve apresentá-la à prefeitura. Mas fica só nisso: a lei não é clara sobre qual o papel do Executivo Municipal na realização do evento.
Rua da Bíblia
Levou tempo, mas nesse outubro de 2017 Feira de Santana ganhou sua “rua da Bíblia”: fica no conjunto habitacional Núcleo Conceição, no bairro Conceição, e substitui a antiga rua D. Na mesma lei, a 3749/2017, aparece até uma rua “Arca de Noé”. Na mesma leva de homenagens embarcaram Lênio Braga – o do magnífico painel da Estação Rodoviária – e o poeta português Fernando Pessoa.
Por fim, aprovaram a obrigatoriedade da leitura da bíblia nas escolas feirenses, públicas e privadas, neste mês de outubro. Isso valerá a partir do próximo ano, segundo propõe o projeto, ainda não sancionado. Imagino que o tempo dos estudantes seria mais bem aproveitado aprendendo português e matemática, já que o desempenho nas mais diversas avaliações é sofrível. Mas isso não é assunto que interesse a vereador, salvo algumas poucas exceções.
Sociedades equilibradas – e mais avançadas – costumam cultivar o salutar distanciamento entre Estado e religião. Afinal, a mistura resultou em inomináveis desgraças no passado. Seria desejável que, aqui pelo Brasil, se começasse a aprender essa lição.
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