Feira de Santana me encanta. Às vezes me emudece e ainda me traz uma sensação de irrealidade. Nascida e criada nesta cidade, acompanho com atenção o seu desenvolvimento. Mesmo assim, às vezes eu a desconheço. E me pergunto: que cidade é essa? O burburinho, a movimentação do comércio, o trânsito congestionado, as sinaleiras, os viadutos. A cidade fervilha no seu cotidiano.
A primeira sinaleira colocada na cidade foi um acontecimento, motivo de muito entusiasmo para os moradores. Uma novidade! Significava o primeiro passo para o desenvolvimento. Lembro, de ouvir contar, um fato interessante, envolvendo um fazendeiro muito conhecido. Reza o “folclore” que o senhor em questão, ao se deparar com o sinal vermelho explodiu:
– Quero ver quem vai me impedir de atravessar a rua. Esse sinalzinho?
Bradou enraivecido e invadiu o sinal, felizmente sem causar danos! Essa sinaleira, a despeito da indignação do fazendeiro, se constituiu, sem dúvida, num dos marcos importantes do crescimento da Princesa do Sertão, assim denominada pelo jurista Ruy Barbosa.
A Feira de Santana de hoje, nem sequer lembra a pacata cidade dos anos de outrora. Já pertenceu a Cachoeira que, por muito tempo foi considerada a capital do Recôncavo baiano e da qual foi desmembrada. Tornou-se a segunda maior e mais importante cidade do Estado da Bahia, embora o progresso desordenado tenha contribuído para desfigurar a paisagem, com a transformação da vida urbana.
Uma promessa que se fez cumprir, o comércio trouxe para essas bandas, as gentes do Ceará, de Pernambuco, das Alagoas, e de tantos outros estados, à procura de melhores dias. Aqui se instalaram. No começo era uma bodega, depois um armazém, o Mercado Municipal onde as pessoas iam às compras semanalmente. A farinha colocada numa mala de couro e a recomendação do meu pai:
– Só me traga a farinha da mala de Joaquim. É a melhor do mercado!
Pouco a pouco, no entorno do Mercado foi surgindo uma feirinha com os produtos colhidos nas hortas das chácaras, muitas situadas na atual avenida Presidente Dutra, quando ali ainda havia residências. No início eram apenas pequenos feirantes com a mercadoria estendida sobre forros de sacos de açúcar do velho calhamaço, que impedia o contato direto com o chão. Tudo muito improvisado. Com o passar do tempo esse comércio cresceu, dando origem à famosa feira livre, que acontecia sempre às segundas-feiras.
Os carregadores de feira com o balaio na cabeça eram contratados para acompanhar principalmente as senhoras em suas compras. Não existia outro meio de transporte para as mercadorias. Mais tarde foram surgindo os carrinhos de mão. Já os carros de praça ficavam estacionados na praça da Bandeira. E só eram usados por pessoas abastadas.
Com beijinhos?
Durante as compras, ao encontrar com as amigas trocávamos beijinhos e ficávamos conversando sobre os últimos acontecimentos, os namoricos, e outras tagarelices, esquecendo completamente o carregador com o pesado balaio na cabeça. Desse modo, com beijinhos e conversa, o carregador exigia preço diferenciado.
As varandas eram raras nas residências da rua Direita. Creio que a nossa casa era a única da rua em estilo moderno, um bangalô, como se chamava na época. Era comum ficarmos na varanda depois do jantar. Nosso local preferido para as brincadeiras. Eu, ainda uma pirralha, junto com minhas irmãs e as amigas cantávamos, dançávamos, o que chamava a atenção pela nossa alegria.
Foi durante uma Micareta que, pela primeira vez, conhecemos o Trio Elétrico de Dodô e Osmar. Ficamos literalmente fascinadas, arrepiadas com aquela música estridente e irresistível! Diante da nossa animação, o trio estacionou bem em frente à nossa casa, onde ficou por um bom tempo executando as marchinhas carnavalescas de então. Não é preciso dizer que foi a glória!
A Micareta de Feira, a primeira do Brasil, começou nas imediações da Loja Pires, na praça da Bandeira, mas aos poucos foi tomando vulto e se estendendo pela rua Direita. Moças e rapazes munidos dos saquinhos de confetes e serpentinas, lançavam e recebiam jatos de lança-perfume, o que representava o máximo da paquera.
Enfim, era na rua Direita onde tudo acontecia. Não só a Micareta como a Festa de Santana. Dois meses antes da festa realizava-se o Bando Anunciador, com mascarados, blocos e outras atrações, dando início à festa profana. O zabumba do Distrito de Bonfim de Feira ou de Riachão do Jacuípe animava o cortejo.
A lavagem da igreja precedia o novenário, que atraia grande número de fiéis. Havia também a Levagem da Lenha, um desfile que remontava a uma época em que a cidade não possuía luz elétrica e era iluminada por grandes fogueiras. Na praça, depois da novena, a movimentação em torno das quermesses, o parque de diversões e as tocatas, pelas Filarmônicas 25 de Março e Vitória, como também a Euterpe Feirense que, no Coreto, executavam dobrados.
As mocinhas com seus vestidos de festa rodeavam o coreto, não só para exibir a elegância dos trajes confeccionados especialmente para o evento, como também para serem cortejadas. As famílias a tudo assistiam atentamente, instaladas em cadeiras, que traziam de casa, a fim de apreciar os festejos de modo mais confortável. Cada uma delimitando seu espaço.
O auge da Festa de Santana era, como ainda hoje, a procissão com as charolas ricamente ornamentadas, destacando-se a de Senhora Santana, a nossa santa padroeira. O cortejo no final da tarde, acompanhado por milhares de fiéis muito contritos, seguia até a igreja da Matriz, onde era celebrada a missa campal. A bênção do SS Sacramento encerrava os festejos religiosos.
Bons tempos aqueles que agora recordamos. De repente, a cidade se transforma. E aparecem a S.A João Marinho Falcão, a Loja Pires, em cuja marquise aconteciam os shows de Luiz Gonzaga, Ângela Maria e outros artistas consagrados. Também o Centro Comercial Mandacaru – o chique daquela época – foi transformando a rua Direita na rua Conselheiro Franco, totalmente invadida pelo comércio, expulsando gradativamente as casas residenciais, para dar espaço ao avanço progressivo do desenvolvimento.
Parabéns Feira de Santana pelos seus 186 anos de emancipação política. Continue crescendo para orgulho dos seus filhos e daqueles que para aqui vieram em busca de melhores oportunidades.
Socorro Pitombo é jornalista.
P.S. Texto inspirado nas lembranças da minha irmã, Therezinha Pitombo
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