HAVIA EM MOSSORÓ um padre sisudo e de sermões insuportáveis na missa de domingo à noite. era o vigário da catedral de santa luzia onde eu eventualmente ia quando perdia a missa da manhã com padre Sátyro Dantas na capela de são vicente.
chamava-se Huberto Bruening. chegara a mossoró ainda como seminarista acompanhando o primeiro bispo da diocese, dom jaime de barros câmara, mais de vinte anos antes desses sermões a que me refiro.
descendente das colônias alemãs de santa catarina, o padre era um tipo com quase dois metros de altura, magro, estrábico e de voz irritantemente anasalada. um trangola, como alguns sertanejos o chamavam, fazendo troça.
mas além da fama popular de turrão e da oposição clerical aberta que fazia aos métodos pastorais do concílio vaticano 2º, usando sempre batina, pregando contra as confissões comunitárias e pontuando um moralismo exacerbado, naquela época dos sermões ele já carregava também uma outra fama bem mais saudável: a de criador meticuloso e apaixonado de abelhas jandaíras.
a dedicação de huberto às jandaíras é contada por ele próprio no livro “Abelha Jandaíra” (comigo uma segunda edição, da coleção mossoroense) através de um diário escrito desde o dia em que “uma pequena e mansa família se alojou no centenário tamarineiro da casa paroquial são cura d’ars da paróquia de santa luzia” aonde o padre foi morar.
”Foi um aviso do céu, que já veio pelos ares”..
TRÊS ANOS DEPOIS possuía 60 cortiços de abelhas jandaíras.: “E como me comprazia em contemplar aquele povinho alado a trabalhar de sol a sol, sem malandro, sem vagabundo, sem greve, sem décimo terceiro mês, sem feriado, nem encolhido nem esticado”
o padre apicultor preencheu o tempo do padre avesso à nova pastoral social. ao invés do homem, “mistura de anjo e bicho”, a abelha. e a dedicação fez dele reconhecido no mundo científico da apicultura. ele deu a visibilidade que faltava à Mellipona Favosa Subnitida Ducke
nas suas anotações do livro sobre a jandaíra são comuns as pistas para o conservadorismo católico. no tópico em que descreve a competição entre abelhas jovens, “as noivinhas”, para ser a escolhida dos zangões e se tornar a rainha da colméia, huberto é revelador sobre o que pensa:
“Geralmente entram diversas candidatas e a briga é maior. Tanto morrem abelhas adultas como noivinhas, até seis por hora. E os zangões providenciam outras, até alguma candidata vencer o campeonato e ser entronizada. Isso pode custar muito tempo e muitas vidas, mas é bom para purificar a raça. Aliás, são tais famílias – fruto de certame renhido – as melhores fazedoras de mel. Aplicação moral: a tal opção pelos pobres é antigenética, pois abastarda a raça (abstração feita da moral)”
seu biógrafo, o padre José Artulino Besen, desenha um perfil ideológico nessa linha: “não era um alienado, insensível frente à miséria, mas era um anticomunista. Em outras palavras, julgava que a pregação pela justiça, reforma agrária, era coisa de comunista. Sonhava com evolução paternalista, nunca revolução”.
E acrescenta:
“Na verdade padre Huberto não apreciou o trabalho social de Dom Eliseu Simões Mendes (1916-2001) que, revolucionando o meio rural através das Semanas Ruralistas, foi “Bispo da Seca”, das águas, das ações sociais.”.
AS JANDAÍRAS sempre foram muito populares na caatinga. nativas, adaptadas ao regime climático, já eram utilizadas na alimentação e farmacopéia dos nossos ancestrais tapuias. huberto, sistemático, aperfeiçoou e introduziu métodos de criação em cortiços.
‘No sertão do Nordeste as jandaíras são só despescadas. não tratadas. As caixas, ou ficam baloiçando em dois cabrestos de arame ou ficam amontoadas, desordenadamente em cima de um taipal ou parede. Resolvi levantar um ranchinho ou cavalete com telhado para abrigar as fazedores de mel, tão apreciado. Bem que merecem!”
fundou um clube de apicultura em mossoró, promoveu palestras, articulou-se com pesquisadores, universidades, enviou amostras de abelhas, mel, participou de congressos, inclusive em munique: “como os alemãos se interessam por abelhas”, exclama no diário.
QUANDO AS ABELHAS AFRICANAS (Apis melifera adansonii) chegaram ao nordeste, ele tornou-se de fato o “protetor das jandaíras” no dizer do naturalista Paulo Nogueira Neto (1922-2019)
As africanas foram um terror:.
“Acabou-se o sossego no povo das abelhas indígenas do Nordeste. Foi aquela confusão que todos sentimos – todos, bichos e homens. Nem filhote de papagaio em oco de aroeira escapou, ninguém foi poupado, nem boi nem galinha”.
A descrição minuciosa,as nuances da ecologia nordestina, e o registro espontâneo de uma linguagem e sabedoria do povo rural da região do mossoró faz desse livro um clássico literário além da apicultura. ali estão os dois padres. o da catedral e principalmente o padre das jandaíras.
É no padre apicultor que busco inspiração nesses dias de isolamento. depois que me deparei aqui, na Matinha dos Pretos, com uma casa de marimbondo no caule de um pé de licuri. casa pequena, abaulada, de cor cinza parecendo papel, balouçando fixa na parte interna da folha de uma planta que se hospeda na palmeira do coco pequeno da bahia. não é fácil de ser notada e nem lhe atingem as chuvas que chegam do nascente. passei a observá-los.
mesmo sabendo, depois de consultar dr. google e um velho manual da escola de agronomia de vingt-un rosado, que marimbondos são vespas, não abelhas. embora tenham uma organização familiar semelhante, não produzem mel. continuo a observá-los. só espero que não seja pela vida inteira, como fez huberto.
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