“ – Boa noite, Londres. (…) Desde a aurora da humanidade um punhado de opressores assumiu a responsabilidade sobre nossas vidas, responsabilidade que nós deveríamos ter. Ao fazer isso, tomaram nosso poder. Ao noda fazermos, nós o entregamos.”
V de Vingança, 1989
V de Vingança é um clássico dos quadrinhos mundiais, lançado entre 1982 e 1989 pela extinta revista Warrior e mais tarde pela DC Comics, escrito por Alan Moore e desenhado por David Lloyd. A HQ, anos mais tarde, virou filme, eternizado pelos atores Hugo Weaving e Natalie Portman e produzido pelas irmãs Wachowski, diretoras da trilogia Matrix. Popularizou-se após a adoção da máscara de Guy Fawkes[1] – utilizada pelo protagonista da obra – pelo grupo Anonymous e outros grupos de protesto.
A HQ é uma alegoria política que critica a política imperialista da Inglaterra de Margareth Tatcher e a restrição dos direitos individuais nos Estados Unidos. Utilizando-se de uma visão anarquista ou muito próxima disto, a obra levanta uma série de críticas a governos totalitários, que espalham o medo generalizado e utilizam-se da mídia para manipular a população. No filme, de 2006, a crítica política é atualizada com o foco no governo de George W. Bush e com Tony Blair no lugar de Tatcher, sendo que a trama se passa no final da década de 2020.
A obra é ambientada em um futuro pós-apocalíptico do Reino Unido após uma guerra nuclear que devastou grande parte da população mundial. A turbulência provocada pelos conflitos permite que organizações de direita e empresas que sobreviveram, unam-se sob a bandeira Nosefire, estabelecendo rapidamente uma ordem distópica e fascista no país à beira do caos. O quadrinho é protagonizado pelo anarquista revolucionário V, que tem como missão destruir o governo neofacista, LGBTfóbico, racista, fanático religioso que está no poder. Qualquer pessoa que não seja heterossexual, branca e complacente, desaparece nos campos de concentração e o Reino Unido há muito tempo está “limpo”: seja étnica, social e sexualmente. Os direitos civis são caçados, censuras são impostas aos meios de comunicação e opositores são violentamente reprimidos.
Duas coisas podem ser extraídas da obra: como a população britânica desse futuro distópico ficou feliz em aceitar o controle do governo e fechar os olhos às atrocidades cometidas – graças ao medo e desconfiança gerado pelos conflitos do momento – e como, mesmo no auge dos anos do governo de Margaret Thatcher, os autores pensavam que seria necessário algo de imensas proporções, como uma guerra nuclear, para que o Reino Unido (e podemos extrapolar essa ideia para outras democracias) adotassem um governo autoritário. As democracias não caem mais dessa forma. Políticos autoritários estão chegando ao poder através de eleições democráticas ao redor do mundo. Um paralelo pode ser traçado entre esse futuro distópico e o atual momento vivido por algumas nações, com a virada autocrática de suas democracias, a ascensão do populismo e de líderes oportunistas, a exemplo dos Estados Unidos, com Donald Trump e do Brasil, com Jair Bolsonaro.
Nos EUA, o fenômeno chamado de “autoritarismo norte-americano”, foi protagonizado pela figura do milionário Donald Trump: Em 2016, a eleição de Trump foi uma surpresa, consequência da frustração e medo de uma parcela considerável do público, com a incapacidade dos últimos governos em resolver a crise do terrorismo, as consequências da imigração hispânica e a insegurança urbana. Antes disso, Trump passou anos advogando pelo “birtherism”, afirmando que Obama não era americano e por isso não deveria ser presidente do país. Inflamando o discurso de ódio contra imigrantes, que não deveriam ser considerados cidadãos americanos sob nenhuma circunstância. Em 2012, ensaiou uma pré-candidatura, mas saiu da disputa afirmando não estar pronto para deixar seus negócios. Entre 2012 e 2015, não teve protagonismo político e por isso sua participação nas primárias do Partido Republicano foi motivo de piada. Trump era visto como mais uma celebridade em busca de atenção para sua próxima empreitada. Apoiado em uma plataforma de campanha tripla – voltada para o nacionalismo econômico, a intervenção estatal na política migratória e para uma politica externa mais nacionalista e menos interdependente – Trump diferenciou-se dos demais candidatos conservadores, polarizou o debate e passou a ser visto como a voz do povo. Apesar do discurso protecionista, racista, xenofóbico e machista, Trump venceu as eleições e tronou-se o 45º presidente estadunidense.
No Brasil, seguiu-se a seguinte narrativa do chamado “Trump dos trópicos”: Capitão reformado do Exército, se elegeu vereador pela cidade de Rio de Janeiro nas eleições municipais de 1988. Dois anos depois, foi eleito para um cargo nacional, como deputado, também pelo Rio de Janeiro e lá permaneceu por outros seis mandatos. Durante seus 28 anos como deputado, Jair nunca se destacou. Após as eleições de 2014, Bolsonaro parece ter percebido o avanço do conservadorismo na composição do Congresso Nacional, o que muitos chamam de bancada BBB – bala, boi e bíblia – políticos que pedem a legalização das armas e que centram seus discursos na segurança, os que representam os latifundiários e pecuaristas e os deputados religiosos evangélicos. Foi batizado no Rio Jordão por um pastor evangélico e filiou-se ao Partido Social Cristão. O, até então, deputado federal tornou-se cada vez mais conhecido nacional e internacionalmente por suas posições nacionalistas e conservadoras, além de suas duras críticas ao comunismo e à esquerda. Além de defender temas controversos, como a ditadura militar, a tortura como prática legítima e o cerceamento de direitos civis de minorias. Em outubro de 2018, na condição de candidato do Partido Social Liberal (PSL) chegou à Presidência da República Federativa do Brasil, e, desde então, vem reforçando sua preferência pela Ditadura, sua falta de compromisso com a liberdade de expressão da mídia e seu desprezo pelas minorias.
As políticas de violência e ataques constantes contra minorias adotas tanto por Trump – em 12 meses, de setembro de 2018 a setembro de 2019, agentes americanos sob a política[2] xenofóbica e repressiva de Trump prenderam cerca de um milhão de imigrantes ilegais, apoiado em seu discurso protecionista, colocando os imigrantes como os grande “ladrões” dos empregos dos norte-americanos – quanto por Bolsonaro – que deu ao longo de sua carreira política e governo inúmeras declarações preconceituosas como quando, por exemplo, declarou[3] que “seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo” – aproximam-se das ideias defendidas pelo governo britânico do mundo distópico de V de Vingança.
V de Vingança mostra como vê parte do processo de ascensão de líderes como Trump e Bolsonaro. Aponta a responsabilidade de quem os apoiou, não negando a culpa desses autoritários, deixa claro que, por exemplo, não vê diferença entre Hitler, Stalin e Mussolini – e provavelmente também não veriam entre Fujimori, Chávez, Maduro, Trump, Bolsonaro, Orbán, Erdaogan e demais líderes autocratas e autoritários – seus governos se equivaliam, contudo os autores da obra reafirmam qual a posição que delegam a população:
As atuais e constantes manifestações nos EUA, Brasil e ao redor do mundo não foram as primeiras e não serão as últimas. Em umas das sequências finais de V de Vingança, vemos um povo, cansado da opressão política e das injustiças sociais, saindo às ruas. No filme, saem com suas máscaras de Guy Fawkes, não para se esconder, mas para mostrar que por trás da máscara somos todos iguais.
[1] Fawkes foi um extremista católico e herói militar condecorado. Pretendia destruir o Parlamento com grande quantidade de explosivos e matar James I, o rei inglês que estabelecera multa para quem não comparecesse às missas anglicanas. Fawkes foi escolhido para ser a peça principal do atentado. No entanto, um dos conspiradores alertou um amigo que trabalhava no parlamento para que não comparecesse no dia 5 de novembro de 1605, data planejada para o grande incêndio. A informação acabou chegando aos ouvidos do rei e ele foi torturado e executado em 31 de janeiro de 1606 e o plano de explodir o parlamento falhou.
[2] Em 2018 o mundo se chocou com as imagens e áudios das famílias separadas por Trump nos centros de detenção, e as imagens cruéis das crianças que eram separadas de suas famílias pelas mãos dessa política trumpista.
[3] Em entrevista a Revista Playboy, em 2011.
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