Em 22 de julho de 2019, sem que muita gente pudesse ficar sabendo, foi realizada em Feira de Santana uma Reunião Técnica Informativa cuja suposta finalidade era dar conhecimento, às pessoas afetadas, do projeto de construção de uma Linha de Transmissão-LT de energia elétrica em alta tensão (500kv), que cortará esta região. Os relatos que se ouvem das poucas pessoas presentes dão conta da atitude desrespeitosa dos representantes da Dossel Ambiental Consultoria e Projetos Ltda., empresa que atua como consultora no licenciamento ambiental da obra em nome da São Francisco Transmissão de Energia S.A. (versão nacional da empresa indiana que venceu a licitação da concessão, a Sterlite Power Grid Ventures Limited). Deu-se naquela ocasião notícia da obra como se ela fosse “favas contadas”, sem maiores detalhes sobre o exato trajeto da LT e com muitas lacunas sobre seus impactos reais sobre o solo, água, plantas, animais e comunidades humanas afetados.
Foi da indignação causada pelas notícias, pelo modo de condução do problema e pelas graves consequências da obra (aliada a outras questões a afetar comunidades rurais do Portal do Sertão) que nasceu o Grupo de Trabalho Conflitos Socioambientais, reunindo organizações da sociedade civil, comunidades rurais e quilombolas, professores/as e estudantes da UEFS, IFBA, UFRB, UNEB e UNILAB. Após o choque inicial, o trabalho conjunto de mobilização foi aos poucos avançando, tornado possível em especial pela articulação do Sindicato de Trabalhadores da Agricultura Familiar de Feira de Santana (SINTRAF-Feira) e pelas experiências de luta das Associações Comunitárias rurais e diversas comunidades quilombolas afetadas. Ao GT coube levantar as informações que estavam sendo mantidas sob uma densa neblina (que ainda não se desfez completamente), na tentativa de devolver às comunidades o direito a um posicionamento autônomo e consciente, que lhes está sendo negado pela forma como é conduzido o processo de licenciamento.
Concretamente estamos falando de torres de 60 metros de altura, fincadas a cada 500 metros, ligadas por fios por onde será conduzida energia elétrica em altíssima tensão. A LT é apenas um trecho de um conjunto maior, objeto de licitações promovidas pela ANEEL em 2018 para possibilitar o escoamento de energia produzida no Nordeste em proveito de consumidores localizados no Sudeste/Centro-Oeste. No caso específico a energia é produzida em Porto Sergipe, no litoral de Sergipe, por uma termoelétrica com grande potencial ofensivo ao meio ambiente (que está na primeira ponta da LT) e também em Sapeaçu, na Bahia (a outra ponta), onde igualmente se instala uma danosa termoelétrica[1]. Ao entorno desta LT foi instituída uma Faixa de Servidão em favor da empresa concessionária com 55 metros, onde não poderão existir construções (moradias e demais benfeitorias), espécie vegetais grandes e médias, culturas que dependam de queimadas. Nesta faixa, todas cercas e porteiras deverão ser aterradas, sob pena de risco de choques elétricos. Há estudos diversos que indicam efeitos do campo eletromagnético criado pela linha sobre a saúde humana e animal, contaminação da água e solo.
Do ponto de vista patrimonial, o efeito da faixa de servidão é muito peculiar. Pois a servidão é um direito sobre o direito de propriedade de alguém, mas ela não implica na perda da propriedade. A empresa concessionária ganha o direito de usar e fruir desta faixa, encravada nos bens de outras pessoas. Por isso, o cálculo da indenização levará em consideração apenas a servidão sobre um trecho do bem, e não a propriedade. Apenas se a faixa inviabilizar por completo a destinação original da propriedade poderá se falar em desapropriação do bem em sua inteireza. Não é o caso, ainda, de direito a um pagamento periódico (como acontece às vezes, por exemplo, na instalação de antenas para celular, em que se paga uma espécie de “aluguel”): o ressarcimento se dá por meio de um pagamento único, calculado considerando o valor que o bem perde com a LT.
O trajeto da LT parece (coincidentemente?!) escolher regiões onde predominam populações historicamente vulnerabilizadas e, justamente por isso, também predomina a posse (e não a propriedade juridicamente regular) da terra (o caso do município de Antônio Cardoso é exemplar, apesar de quase todo o seu território corresponder a seis grandes latifúndios, o trajeto da LT por lá parece ziguezaguear em busca dos minifúndios e comunidades quilombolas, atingindo todas as existentes). Torna tudo mais grave, por fim, o fato de que uma faixa de 55 metros de largura impacta muito mais profundamente pequenas propriedades rurais, onde vivem seus/suas possuidores e famílias, ao contrário dos grandes latifúndios, cujos/as donos/as estão de regra bem longe da LT, nos centros urbanos).
A lógica que preside a escolha do trajeto da LT, portanto, é a da mercadoria e do mercado, onde não cabem vida, saúde, bem-estar e cuidado. E onde a régua é o racismo que estrutura nossa sociedade, para determinar quais as vidas que importam. E, nesta dinâmica, palavras como “progresso” e “desenvolvimento” são usadas sempre com um olhar de “pena” para quem ousa colocá-las em dúvida, como se desde sempre e para qualquer pessoa elas tivessem sentido e surtissem efeitos.
É com essas palavras de efeito, aliás, que o projeto é apresentado pelas empresas e pelo Poder Público, a quem incumbiria, ao contrário, garantir que a obra respeitasse os direitos das pessoas atingidas. Ao menos nos municípios da nossa região, nenhuma consulta ou providência administrativa foi promovida pelos poderes públicos municipais, a despeito dos impactos que a obra terá sobre a economia local (em especial a agricultura familiar)[2], sobre equipamentos públicos[3] e, sobretudo, sobre a saúde física e mental dos seus habitantes. Todas as Prefeituras do trajeto foram oficialmente informadas sobre a obra no segundo semestre de 2018, sem que se tenha notícia de providências para proteger as pessoas e áreas afetadas.
É muito importante ressaltar que o empreendimento não tem ainda o licenciamento ambiental. O Processo de Licenciamento é federal (pois a obra afeta dois Estados diferentes) e desenvolve-se perante o escritório baiano do IBAMA, em Salvador (n. 02001.022704/2018-96). O licenciamento ambiental de LTs submete-se a uma regra própria (a Portaria MMA 421, de 26.10.2011), onde está dito que via de regra o procedimento será simplificado, mas deverá ser adotado o procedimento ordinário (onde há mais exigências e estudos, e maior publicidade e espaços e participação social, como a audiência pública) quando ocorrer alguma das circunstâncias descritas no seu art. 5º, dentre as quais: “I – remoção de população que implique na inviabilização da comunidade e/ou sua completa remoção; II – afetação de unidades de conservação de proteção integral; […] V – intervenção em território quilombola”.
O Relatório Ambiental Simplificado apresentado pelo empreendimento ao IBAMA não afasta de maneira clara estas condicionantes. Ainda mais grave: o IBAMA autorizou o regime simplificado de licenciamento em Termo de Referência datado de 14.11.2018 e só depois, por meio do Ofício 530/2018/GGLIN/DLIC/IBAMA, de 19.11.2018, solicitou da Fundação Palmares informações sobre a existência de comunidades quilombolas afetadas pela obra. E elas existem em grande número: Curral de Fora, em Água Fria (onde a LT também afeta o Projeto de Assentamento Menino Jesus); Subaé, Gavião, Cavaco, Paus Altos e Santo Antônio, em Antônio Cardoso; Vila nova, em Biritinga; Lagoa Grande, Matinha e Fazenda Candeal II, em Feira de Santana; Mussuca, em Laranjeiras e Quebra-Chifre, em Riachuelo (as duas últimas, no Estado de Sergipe).
A legislação exige, no caso das comunidades tradicionais afetadas por empreendimentos potencialmente nocivos, que elas sejam ouvidas (é o que diz a Resolução 169 da OIT). Determina que seja realizado estudo específico para dimensionar, evitar ou minimizar seus efeitos. E isto não está sendo feito em todas as comunidades[4].
As comunidades de Subaé e Santo Antônio, em Antônio Cardoso, embora devidamente certificadas pela Fundação Cultural Palmares, foram omitidas do processo de licenciamento. Em luta, já levaram o problema ao Ministério Público Federal, do que resultou a abertura do Inquérito Civil Público n. 1.14.004.000225/2019-01, em curso no escritório do MPF em Feira de Santana.
Neste meio tempo, a despeito das diversas irregularidades (informadas ao IBAMA formalmente por ofícios encaminhados pelo SINTRAF-Feira de Santana e pelo GT Conflitos Socioambientais), a licença prévia foi deferida pelo IBAMA. O empreendimento, no entanto, não dispõe ainda das licenças de instalação e de operação, necessárias para iniciar a obra.
Em um momento político de grave retração das garantias duramente conquistadas com muita luta, mostra-se como nunca necessária a união de forças. O GT Conflitos Socioambientais, de que fazem parte os/as Autores, tem atuado para suprir o que a condução do processo nega às comunidades afetadas: o direito à informação transparente e acessível sobre os efeitos da obra em suas vidas e de exercer autonomamente o direito de escolha. Ao contrário, o projeto transcorre praticamente em segredo, não havendo previsão de escuta das pessoas afetadas. O direito que a lei de papel apregoa vira cinzas diante da lógica do dinheiro e do racismo.
A mesma lei de papel, na dialética da vida “de carne e osso”, também pode servir como uma das bandeiras das lutas que já estão acontecendo – lutas que já fazem parte da história resistente e forte de gente que teima em se fazer vida, apesar de tudo. Este texto é uma contribuição para ela, no exercício do papel que cabe às Universidades Públicas enquanto produtoras de um conhecimento, coletivo e horizontal, que sirva à mesma vida.
Emmanuel Oguri Freitas é Professor do Curso de Direito da UEFS. Doutor em Ciências Sociais e Jurídicas (Programa de Pós-Graduação em Direito e Sociologia da Universidade Federal Fluminense – PPGSD-UFF)
Beatriz Carvalho Torres Mendes é Graduanda em Direito – UEFS. Bolsista de Extensão
Flávia Almeida Pita é Professora do Curso de Direito da UEFS. Doutoranda em Ciências Sociais e Jurídicas (PPGSD-UFF). Procuradora do Estado da Bahia
Hudson Silva dos Santos é Técnico Administrativo do Instituto Federal da Bahia (IFBA) – campus Feira de Santana. Doutorando em Ciências Sociais e Jurídicas (PPGSD-UFF)
Luciéte Duarte Araujo é Licenciada em História (UEFS). Bacharela em Direito (UEFS). Especialista em Gestão do Desenvolvimento Territorial (Universidade Federal da Bahia – UFBA)
Maria José Andrade de Souza é Professora do Curso de Direito da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA). Ex-professora do Curso de Direito da UEFS. Doutora em Ciências Sociais e Jurídicas (PPGSD-UFF)
Suzana Oliveira Cedraz é Graduanda em Direito – UEFS. Extensionista voluntária do Núcleo de Prática Jurídica da UEFS
Os Autores e Autoras estão dispostos em ordem alfabética. Todos/as integram o Grupo de Trabalho Conflitos Socioambientais, mencionado no corpo do texto.
[1] Na Bahia, o trajeto da LT corta os municípios de Água Fria, Anguera, Antônio Cardoso, Biritinga, Cabaceiras do Paraguaçu, Feira de Santana, Itapicuru, Nova Soure, Olindina, Santa Bárbara, Santanópolis, Santo Estevão, Sapeaçu e Sátiro Dias; em Sergipe: Barra dos Coqueiros, Boquim, Itaporanga D’Ajuda, Lagarto, Laranjeiras, Maruim, Nossa Senhora do Socorro, Riachão do Dantas, Salgado, Santo Amaro das Brotas, São Cristovão, Tobias Barreto.
[2] A LT atravessará também Área de Proteção Ambiental Lago Pedra do Cavalo, afetando não só o meio ambiente natural, mas o patrimônio paisagístico e cultural que se traduz em lazer, beleza e turismo.
[3] O GT constatou, por exemplo, a existência de escola municipal (Garapa, distrito de Maria Quitéria) dentro da faixa de servidão da linha, no município de Feira de Santana. A LT inviabiliza, ainda, a pista de voo livre do Morro de São José, em Feira de Santana, que recebeu beneficiamentos que envolvem verbas públicas do município de Feira e da União.
[4] O art. 3º, §2º, II da Portaria Interministerial 060/2015 determina que sejam objeto de estudo as comunidades quilombolas situadas num raio de até 5 km de linhas de transmissão de energia.