Reproduzo abaixo um trecho da análise “O bipartidarismo ainda tem futuro nos EUA?”, publicada no quarto número da revista Petrel – Boletim de Conjuntura.
Na convenção democrata que nomeou Biden, Alexandria Ocasio-Cortez fez o gesto simbólico de apoiar Sanders, destacando a existência de um “movimento que entende a brutalidade insustentável de uma economia que premia desigualdades obscenas para os poucos às custas da estabilidade de longo prazo para os muitos”. Mesmo assim, o candidato derrotado nas primárias apoiou seu colega de partido, Joe Biden, e é inclusive cotado para a vaga de secretário do emprego, posição que afirma aceitar caso tenha sob seu poder “um portfólio que permita lutar pelas famílias trabalhadoras”.
Joe Biden conseguiu montar uma coalizão contra Trump, agregando vários setores relutantes da esquerda considerada radical. Mas assim que a “trégua eleitoral” passou, a disputa interna voltou a se acirrar (GODFREY, 2020). Diante dos resultados mais parcos do que o esperado – o partido, além de não conseguir ganhar maioria no Senado, manteve por pouco sua preponderância na Câmara – o racha interno já começa a se evidenciar nos diagnósticos oferecidos. Enquanto para centristas, como a deputada de Nova Jersey, Abigail Spanberger, a performance aquém do projetado está na conta da ala liberal e de reivindicações de movimentos como Black Lives Matter; para Ocasio-Cortez, o partido falhou em atingir os eleitores jovens com propostas de mudança real e em não levar a sério a campanha no porta-a-porta e na internet.
O governo Biden, no entanto, permanece sem identidade. Seguindo a tônica da política pós-moderna na qual estamos já invariavelmente imersos, os eleitores estadunidenses precisaram se contentar com uma anti-campanha cuja principal promessa é retornar o país para uma suposta normalidade pré-Trump. Mesmo após o resultado do colégio eleitoral, a pergunta “O que será o governo Biden-Harris” permanece indefinida. O presidente eleito afirma a importância do meio ambiente, mas nega o green new deal e apoia o fracking; diz apoiar a igualdade racial e de gênero, mas não propõe políticas de compensação e equalização econômica; ressalta a necessidade de se combater a pandemia, mas rejeita a saúde pública universal; compreende a urgência de retomar as alianças estremecidas com o Ocidente democrático, mas não deixa claro se vai remover ou não tropas do Oriente Médio.
A ala mainstream do partido resiste à renovação. A maioria republicana no Senado, inclusive, pode atuar como uma aliada inusitada do centrismo democrata que rechaça nomeações como a de Sanders na Casa Branca: a pouca representatividade da esquerda no governo pode ser facilmente justificada pelo discurso oficial com o argumento de que esses nomes não passariam pelo escrutínio do presidente republicano do Senado, Mitch McConnell. A continuidade da liderança de Nancy Pelosi é mais um sinal de que, apesar de ter crescido, a esquerda do partido democrata ainda não está convidada para a “salinha das decisões”. Resta saber se serão sufocados, chutarão a porta ou repetirão o ato do Terceiro Estado francês.
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