A pandemia Covid 19 é uma nova versão de mais uma peste que assola uma mesma humanidade que, se evoluiu tecnologicamente, mantém em si mesma o que se poderia chamar de mais essencialmente natural do ser humano, ou seja, vive ainda submetida aos chamados gigantes da alma: o medo, o ódio, o amor, e o dever (Mira y López: 2001) e que vive, entre idas e vindas, entre luzes e sombras.
De fato, em que pese dispor de redes de conexão instantâneas, podendo se deslocar sem sair de seu lugar, interagindo ao vivo e a cores com outros indivíduos não importa em qual lugar do planeta, ainda assim, o ser humano não conseguiu operar as mudanças que poderiam fazê-lo se libertar da escravidão dos vícios, da servidão voluntária ao poder instituído, nem fazer sua identificação, o que o leva a viver apenas como mais uma rês no rebanho.
Dividida entre os que pregam a necessidade do uso da máscara como uma das únicas formas de tentar evitar a contaminação pelo vírus, e aqueles que, acintosamente, além de rejeitar o seu uso pregam a desqualificação do eventual usuário (seriam “maricas”, por exemplo),quando não ajudam a disseminar a narrativa de um perigoso complô internacional demoníaco para mudar o DNA das pessoas vacinadas e assim efetuar um maior controle da população, aprisionando corações e mentes, abalando a “fé cristã e ocidental”, grande parte da população mundial, e do Brasil, em especial, vê-se confusa e angustiada.
Observe-se que, paralelamente à pandemia que varre saúde e vidas de pessoas, independentemente de sua idade, classe social, ou gênero, como um novo cavaleiro do apocalipse, trazendo em sua passagem a destruição, a dor e o sofrimento; um outro cavaleiro da morte também faz sua aparição na Terra, provocando morte, doença, penúria e privação de várias ordens ao instalar nas sociedades humanas o Caos, a Confusão: o mau governo, ou o governo da necrofilia.
Ao negar a gravidade da peste, desacreditando da pesquisa científica, jogando nas mentes mais frágeis e mais ignorantes e mais ressentidas a semente da desconfiança na Ciência, o mau Governo dissemina o adubo propício para o desenvolvimento de uma cultura do desprezo pelos mais vulneráveis, incentivando o menosprezo pela responsabilidade social e deixando ao deus Mercado o poder de decidir quem vive e quem morre, do quê morre e de como viverão os chamados “condenados da Terra”, se sobreviverem à pandemia e ao pandemônio.
Cabe indagar por que essa política negacionista que desdenha da própria fragilidade humana encontra eco nos corações e nas mentes de tanta gente, e, principalmente, tem o apoio e a adesão dos que se sabem em vulnerabilidade?
Observe-se que, ao vermos imagens de dezenas, centenas ou milhares de pessoas, de todas as idades, majoritariamente jovens, em sua grande maioria pobres ou de classe média, sem máscaras, aglomeradas, em geral pensemos que são corajosos, destemidos, sem medo da peste, sem medo da morte… No entanto, outras podem ser as explicações para este exibicionismo negacionista: pode ser simplesmente falta de amor à vida, falta de interesse pela própria vida, falta de esperança no viver, pois
…uma pessoa pode ser destemida porque não se importa de viver; para ela a vida não vale muito, daí ser destemida quando enfrenta o perigo de morrer; mas, embora não tenha medo da morte, ela pode ter medo da vida. Seu destemor é baseado na falta de amor à vida; normalmente ela é não nada destemida quando a situação não põe em risco a sua vida. Com efeito, ela frequentemente procura situações perigosas a fim de evitar seu medo da vida, de si própria e dos outros. (FROMM:1969, p.29)
Claro que há também aqueles e aquelas que, incapazes de pensarem por si mesmas, comungam, de maneira obsessiva, de um ideário de um ídolo, um político, um pastor, ao qual se devotam religiosamente, ou seja, alguém que vive “…em submissão simbiótica a um ídolo, seja ele uma pessoa, uma instituição ou uma ideia; as ordens do ídolo são sagradas; até mesmo mais obrigatórias do que os comandos de sobrevivência do seu corpo. Se pudesse desobedecer ou duvidar desses comandos do ídolo, [esta pessoa ] enfrentaria o perigo de perder sua identidade com o ídolo; isso significa que estaria correndo o risco de se encontrar totalmente isolada e, assim, à beira da loucura. Ela está disposta a morrer porque teme expor-se a esse perigo” (FROMM:1969, p. 29).
Nesta linha de argumentação, posso concluir que se incluem dentre os negacionistas estes indivíduos que, sem terem feito sua identificação, desejando ardentemente parecer ‘’igual”, ”normal”, repetindo padrões, aceitando sem questionar valores dos quais não sabe mesmo o que podem significar, e temendo viver sem identidade com seu ídolo ou “mito”, jogam-se em aglomerações, fazem festas supostamente alegres, e dizem celebrar a vida “desafiando a Covid 19”.
São estes seres sem alegria verdadeira, – não se deve confundir o riso ou a gargalhada com felicidade, com contentamento-, pois não têm esperança, nada esperam da vida, que se atiram nas ruas e avenidas, que enchem as lojas, os bares e praias, que fazem festas de aniversário e postam imagens sem máscaras.
Para usar máscara e fazer o isolamento social, para propugnar pela responsabilidade social, – assumir a responsabilidade pela vida do Outro, reconhecer que não se vive fora de conexões e interdependência-, é necessário ter outro tipo de destemor e que só é “encontrado na pessoa plenamente desenvolvida, que se apoia dentro de si própria e ama a vida. A pessoa que superou a cobiça não se prende a nenhum ídolo ou a qualquer coisa e, por conseguinte, não tem nada a perder: ela é rica porque está vazia, é forte porque não é escrava dos seus desejos. Pode abandonar os ídolos, os desejos irracionais e as fantasias porque está em pleno contato com a realidade, dentro e fora de si mesma.’’ (FROMM,1969, p.30)
Por isso fica patente que somente os que têm verdadeira coragem podem se precaver, podem oferecer contribuições para a vida social a partir da adoção de medidas simples e aparentemente fáceis: o uso da máscara e a prática do isolamento. E isso só pode ser praticado por quem tem fé, pois
“Ter fé requer coragem, capacidade de correr riscos, disposição para aceitar até mesmo a desilusão e a dor. Quem insiste na segurança e na tranquilidade como condições primeiras da vida não pode ter fé. Quem se fecha numa concha defensiva, se converte em prisioneiro, imobiliza-se no medo. Ser amado e amar implicam em coragem inclusive de ressignificar valores, repensar caminhos, enfrentar decisões que podem abalar a aparente segurança da “vida tranquila”. (BLOCH: 1991, p.149-150)
Não é que os que são destemidos e se preservam e se dispõem a cuidar de si mesmo e dos outros sejam seres perfeitos ou sem conflitos interiores, ou não tenham dúvidas sobre seu destino e sobre a missão na terra e não questionem sua própria existência, mas é que, verdadeiramente destemidos, ao invés de tentarem manter-se agarrados em certezas nem sempre evidentes ou seguras, estes verdadeiros corajosos colocam-se na vida em disponibilidade, com fé na vida e coragem para recomeçar, quando preciso, e sabem que devem estar dispostos a refazerem projetos, pois cada indivíduo destes “[…] Sente como se uma nova fase da vida tivesse começado; pode sentir a verdade dos versos de Goethe: “Coloquei minha casa sobre o nada; é por isso que o mundo todo é meu”. FROMM, op. cit.)
Por isso, somente quem não teme vencer seus demônios interiores, seus medos, somente quando se tenta se libertar de ressentimentos e medos, ódios e dogmas, pode destemidamente usar e defender tanto o uso da máscara quanto a prática do isolamento social como condições prévias para tentar evitar o avanço da Covid 19, enquanto espera uma provável vacina, não importa de onde vier.
Leia os outros textos da série: Crônicas de pandemia e pandemônios
Só pra lembrar que o vírus carrega tem a sabedoria milenar, enquanto ao homem que o nega, também nega a própria juventude da raça humana e paira por sobre as densas nuvens da ignorância…
É isso, também. Obrigado por comentar