Bem poucas vezes no mundo dito civilizado, assistiu-se à implantação de uma série de retrocessos sob o comando de governantes eleitos legitimamente, mesmo se utilizando de estratégias e táticas desonestas, uma vez que distorciam a realidade e semeavam mentiras.
Tanto nos Estados Unidos da América do Norte, com Donald Trump, como no Brasil, com Jair Messias Bolsonaro, sinais de clara ruptura com marcos civilizatórios, que pareciam bem definidos e aceitos socialmente, seriam emitidos e prometidos desde a campanha eleitoral, de modo inegável, num aparente “sincericídio” que, surpreendentemente, lhes renderia a vitória na campanha presidencial.
No caso do Brasil, na esteira do ódio disseminado pela mídia corporativa aos governos democráticos e considerados “de esquerda” (Lula, dois mandatos, e Dilma, reeleita para um segundo mandato), cristalizou-se no imaginário social a percepção errônea que levava a associar desenvolvimento econômico e bem estar social com desperdício de dinheiro público.
Toda uma narrativa foi construída para convencer a opinião pública que seria preciso dar um basta “em tanto dinheiro jogado fora”. Criou-se o “impostômetro”, que mostrava o que parecia ser uma das “provas” da escorcha do Estado gastador sobre quem produzia. Pouco a pouco, sem compreender que toda narrativa está a serviço de um conjunto de ideias, para defender ou desconstruir um determinado status quo, a grande maioria da população iria ser convencia do “parasitismo” dos pobres que, através das políticas de ação afirmativa iriam ter acesso a habitação popular, financiamento de bens e serviços (de linha branca a automóveis, escolas técnicas e universidade, merenda escolar, escola de tempo integral, mais médicos, saúde das famílias…).
A chegada dos pobres, pretos e pardos às melhores universidades do país, exatamente por serem públicas e gratuitas, iria abalar antigos privilégios, pondo em dúvida toda a chamada meritocracia que fazia pensar que, apenas por serem “os melhores”, os mais ricos — todos brancos — estariam capacitados a fazer os melhores cursos nas melhores instituições de ensino.
O que antes era reservado apenas aos “bem nascidos”, passava a ser acessível a “qualquer um”, a “qualquer sem eira, nem beira”. Cidadãos de bem, senhores e senhoras de aparente distinção, clamavam por serem obrigados a esperarem sua vez em filas as mais surpreendentes: de supermercados a agências bancárias, e, para o pasmo de uma elite, também branca e racista: no check-in dos aeroportos…
Nas ruas e avenidas das grandes cidades, e até mesmo das pequenas, engarrafamentos de automóveis, necessitando a intervenção do poder público para a adequada sinalização urbana e criação de protocolos de trânsito. O acesso ao automóvel permitia, ao mesmo tempo, que uma classe média baixa fugisse do péssimo serviço de transporte coletivo e adquirisse um símbolo de uma ascensão social.
“Estarrecida!” foi a expressão de indignação e espanto que uma rica senhora do ramo do agronegócio de pecuária de corte utilizou para narrar sua visita à casa da lavadeira: toda uma linha branca de qualidade igual à sua, brilhava na cozinha daquela família, que já havia recebido o financiamento do programa Minha Casa, Minha vida e agora tinha adquirido, também financiados, geladeira, fogão, televisão, móveis, para equipar sua residência.
Para dar o basta tão esperado a essa “derrama” ao inverso, ao que os ricos e neoliberais chamam de “desperdício do dinheiro público” não havia bastado a criação do Teto de Gastos, que engessava as despesas com saúde, educação, moradia… era necessário tirar do poder um governo que criava alternativas para o combate à pobreza, para a redução das desigualdades.
Surgem então no horizonte social, uma nova narrativa: todo o dinheiro público seria fruto de operações de corrupção generalizada na administração pública e teria como cérebro, como mãe da corrupção aquela que era a empresa pública geradora das maiores riquezas, diretas e indiretas: a Petrobrás, que deveria ser destruída, tampando, para sempre as fontes de saída de dinheiro para financiamento de políticas que poderiam combater a pobreza. Era preciso voltar à velha ordem: “cada um no seu lugar”, como sempre fora desde as capitanias hereditárias.
Nos costumes, nunca jamais se pensou ser possível que pautas consideradas identitárias fossem atendidas: a ampliação do conceito de família, permitindo a adoção de crianças por casais do mesmo sexo, o casamento homoafetivo; a aplicação da Lei Maria da Penha e o combate à violência doméstica e ao feminicídio; as políticas afirmativas de combate ao racismo, sem falar dos investimentos na reforma agrária, na agricultura familiar… as universidades públicas que se “empreteciam” dado o número de pobres e pretos e indígenas que passavam a ter acesso ao ensino superior…
No cenário internacional, as empresas brasileiras, com financiamento público, do BNDES, claro, passavam a competir no mercado internacional, abrindo empregos no Brasil e no exterior, com construção de pontes, estradas, cidades, minas, estaleiros, etc. Odebrecht, OAS, Camargo Correia e outras tornavam-se sinônimos de um modelo de desenvolvimento que chegava a vários países de vários continentes.
O povo brasileiro passou a se orgulhar de ser o que sempre foi: um povo novo, mestiço, que fazia da alegria de viver a sua marca registrada. No entre lugar dos que transitam sem medo das tensões entre culturas diferentes, enquanto mestiço, o brasileiro soube dialogar com aparentes oposições binárias e por isso, sem se fazer de rogado, transitava com a mesma desenvoltura do terreiro de candomblé à missa católica, ou no culto protestante, no domingo pela manhã, sem esquecer de levar a mãe, a avó, a tia, ou a sogra, ou parentes à sessão espírita no domingo à tarde, ou mesmo no sábado à noite.
Empregadas domésticas viajando de avião? Camponeses em aeroportos? Filhos e filhas de jardineiros e garis fazendo medicina, advocacia? Passando em concurso público para promotor e juiz? Jovens brancos e brancas tendo que se submeter a repetidos ENEM para faculdades privadas sem grande notoriedade porque as públicas estavam sendo ocupadas por negros, quilombolas, indígenas, afrodescendentes e pobres? Que passavam a fazer intercâmbio no estrangeiro?
Era este o retrato do Brasil e dos brasileiros até 2016, quando o Deus Mercado, verdadeira religião do ocidente, determinou que este modelo de governo que subvertia a ordem natural do sistema capitalista deveria ser abolida. E recrutou seus melhores quadros: jovens promotores ambiciosos e ignorantes em política internacional, deslumbrados com os holofotes de uma mídia posta a sua disposição, professores e professoras bolsistas de fundações estrangeiras, comentaristas e jornalistas de renome que ajudariam a criar a narrativa de combate à corrupção para civilizar o país, demonização da política e criação da figura do não político como opção única para a saída democrática por eleições… Faltava desenhar tudo direitinho e para isso a televisão transmitiria com fervor o PowerPoint de Dallagnol e a dureza e firmeza do novo justiceiro, Moro e seus colegas, novos Texas Rangers que iriam, enfim, estabelecer a ordem e a lei, para sempre, na terra que deveria, primeiro, ser arrasada, e ter os líderes presos ou refugiados.
Na eleição seguinte, estava pronto o terreno adubado com o ódio disseminado para a colheita da intransigência, da intolerância, da grosseria e do atraso: a vitória de Jair Bolsonaro é a coroação do sucesso da narrativa difundida pela grande mídia (o dinheiro público jogado pelo esgoto, nas imagens da TV Globo),a pauta dos costumes como necessidade de voltar ao padrão tradicional da suposta família cristã (pai autoritário, mãe submissa e filhos (obedientes (dependentes emocionalmente)), a noção de Liberdade sem contrapartida de responsabilidade, o exagerado antropocentrismo como tradição bíblica herdada do livro do Gênesis (o homem deveria crescer, multiplicar e dominar sobre todas as coisas), o que implica em não respeitar o Outro, seja ele humano ou não humano, ou que se diferencie no todo ou em parte do modelo identitário padrão, e, o mais significativo: o reconhecimento da inexistência e da impossibilidade de limitar a sanha do progresso visto como máxima obtenção do lucro: não deveria haver limites para a exploração do homem sobre a terra. O capitalismo não pode ter fronteiras, limites, marcos civilizatórios, nenhum obstáculo, nada a preservar, pois nada é sagrado, só o vil metal.
Que agora se estranhe a grosseria da linguagem de Jair Bolsonaro é apenas em grande parte por hipocrisia. Grande parte da classe média que pede fora Bolsonaro quer ter mesmo de volta a sua empregada doméstica sem ter de arcar com os custos da previdência que encarece o salário, sem horas extras a pagar, sem feriados e domingos a respeitar. Ou que tivesse a sua disposição o trabalho alheio em troca de um prato de comida.
É preciso desvelar que neste desejo de impeachment não está sugerida nem proposta a mudança de projeto econômico que Bolsonaro representa: o estado mínimo, sem oferecer garantias de qualidade de vida e mesmo de sobrevivência ao seu povo (basta ver a falta de oxigênio em várias cidades brasileiras), a falta de vacinas para a população, a falta de emprego e de trabalho e renda, o fim ou a restrição ao máximo do auxílio financeiro ou do bolsa família, a saúde entregue aos grupos empresariais ( planos de saúde, clínicas, hospitais…), enfim, com o Deus Mercado mandando avisar que “quem não tem competência, não se estabelece”, que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”, ”cada um por si, e Deus por todos”, “a vida é assim, desde que o mundo é mundo”, “só é pobre quem quer”, “foi Deus quem quis”…
Não, eu não quero que Jair Bolsonaro saia do poder sem antes realizar a destruição que ele prometeu fazer e que para isso o elegeram, uns diretamente com o voto, outros lavando as mãos, outros votando em branco, outros viajando.
Não! que ele faça o que tem de fazer, o que prometeu fazer. Que ele continue vomitando porcarias, indecências, vulgaridades… Ele é o representante deste país, deste povo que fez sua opção por ele. Por ele que disse que não sabia governar, mas que teria ao seu lado o Posto Ipiranga, Paulo Guedes. O mesmo que criou o projeto político que continuará mesmo se Bolsonaro sair!
Por que Bolsonaro não fica? Fica, Bolsonaro, por favor, resista! Esperneie, mostre a esta classe média fingida que o projeto que você trouxe ao poder é o mesmo que ela sempre defendeu: racismo, exclusão social, naturalização da pobreza, falta de escrúpulos com o Outro, falta de empatia, recusa ao afeto (não confundir com o apego), embotamento da sensibilidade desde os primeiros anos da escola, misoginia, e muita, muita ânsia de amealhar riquezas, de obter dinheiro a todo custo… isto é a classe média, isto é o capitalismo… isto é o que você, Bolsonaro, representa.
O que quer a classe média quando pede o impeachment? Fim do projeto econômico e político que arruína o país, coloca em frangalhos a nação? De forma alguma! querem substituir apenas Bolsonaro por alguém mais “educado”, que “saiba usar os talheres”, que “não diga palavrão”, que não “arrote na mesa”… Só isso, só o verniz querem ver mudado. Não verão. Engolirão o capitalismo nu e cru no vômito de Bolsonaro, até 2023, sem açúcar e sem afeto. Amém.
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