Claro que o leitor poderá dizer: toda cidade nordestina é assim, outros darão de ombros, outras olharão de soslaio, outras murmurarão que tal cidade seria muito mais representativa, e, acertadamente, haverá quem diga que toda cidade, seja Marrakech ou Calcutá, Vibonati ou Macapá, no Brasil ou alhures, toda cidade é, ao mesmo tempo, terra de exílio e terra de acolhida.
Mas eu sou daqui, desta cidade de Feira de Santana, e é deste lugar que quero falar, mesmo estando bem instalado num apartamento, nesta pandemia, num bairro de classe média branca e majoritariamente racista e, noblesse oblige, reacionária, logo sem compaixão, sem empatia pelo humano que carregue marcas étnicas pouco semelhantes ao seu modelo identitário padrão, gente muito sentimental e pouco sensível, como é de praxe…
Guardo em Feira muitas das minhas lembranças mais preciosas e lá ainda conservo e cuido de grandes afetos: meus pais idosos que, nos anos quarenta do século passado vieram de Mundo Novo e em Feira se conheceriam e se casariam; minha irmã e seus filhos e netos, parentes e amigos e amigas, ex alunos e vizinhos estimados. Por medo de cometer uma injustiça omitindo algum nome, deixo de nomeá-los.
Nascido em Feira de Santana, na Kalilândia, na rua Paulo VI, numa casa vizinha a então Padaria de Zé Padeiro, Logo depois iria para Mundo Novo, para a fazenda Ipueira, de meus avós, onde passaria grande parte de minha infância, retornando para estudar. Primeiro, concluindo o primário na antiga escola João Florêncio, onde hoje funciona o Arquivo Público. Depois no Ginásio Municipal, no Colégio Estadual e por razões de trabalho vindo morar em Camaçari e depois em Salvador.
Quis o meu destino que tendo escolhido a profissão de professor, para Feira de Santana eu voltasse. Foi nesta cidade que quis oferecer um projeto de educação ancorado nas noções de Liberdade e Responsabilidade social, propugnado por uma ética humanista que tinha no filósofo Pedro Dalle Nogare, um dos seus maiores expoentes no Brasil. Claro que Paulo Freire e Carl Rogers, Moacir Gadotti, dentre outros serviriam de referenciais incontornáveis.
Portanto, eu mesmo conheci, na história pessoal, a acolhida que meus pais, como milhares de outros migrantes receberiam, majoritariamente vindos da zona rural, ou de pequenas cidades, como também o exílio forçado pela necessidade de buscar emprego e estudo, como eu mesmo vivenciei.
Terra de exílio, por falta de políticas públicas que assegurassem a criação de emprego e renda, Feira empurraria, como outras cidades, no mundo todo, seus filhos e filhas para fora de suas fronteiras, mais fortemente até os anos oitenta quando a cidade conhece um surto de desenvolvimento com o parque industrial Subaé e a oferta de subsídios às indústrias.
Neste período, uma nova leva de imigrantes chegaria a esta bem nascida entre verdes colinas… do interior da Bahia, do centro sul e de várias partes do Brasil, uma mão de obra mais especializada surgiria do exército de mão de obra menos qualificada. A face da cidade começa a mudar, embora o comércio pareça florescer.
Mais que as feiras livres da grande Feira de Santana, o comércio de secos e molhados, nos grandes armazéns com a venda a granel é o verdadeiro atrativo para a vinda à cidade em seu dia maior: segunda-feira. Preço e variedade e qualidade são razões para que, de simples donas de casas e meros consumidores a comerciantes de vários matizes venham se abastecer na cidade que sabe acolher a todos, que mantém clientela fiel e leal, semana após semana, mês após mês, anos a fio.
Mas, não é somente do comércio que a cidade cresce e prospera, em algumas áreas, incha desordenadamente, em outras, com uma especulação imobiliária beirando a selvageria, degradando nascentes, atulhando lagoas, alterando a geografia e o meio ambiente. Vários serviços começam a ser prestados, evitando o deslocamento de seus habitantes para Salvador: de serviços médico-odontológicos, aos cursos de línguas estrangeiras, às empresas de tecnologias diversas.
A Universidade Estadual de Feira de Santana se afirma no cenário educacional desde os anos oitenta e também ajuda, tanto a evitar a saída dos jovens para Salvador, como começa a atrair centenas de outros estudantes para a cidade. A terra de acolhida vai se confirmando, gorda e grande galinha a abrir suas asas para tentar, desajeitadamente, abrigar novos e incontáveis filhos.
Claro que as transformações sociais e econômicas iriam provocar mudanças nos espaços sociais assim como nos comportamentos das pessoas. Os que vinham de fora também trariam outras visões de mundo que ora confirmavam, ora conflitavam os padrões locais. A televisão iria contribuir para implodir velhas mentalidades rurais que se recusavam a aceitar uma modernidade demasiadamente tardia.
Os belos casarões senhoriais vão sendo vendidos, seus donos abrindo mão da sustentação de uma pompa já inexistente. O dinheiro muda de mãos. São os novos filhos adotivos, os novos forasteiros, a quem a cidade abrigou que passam a ser proprietários de antigas mansões. Que nenhum valor afetivo têm para eles. É com o menosprezo dos vencedores que devem ter posto abaixo belos casarios para sobre suas ruínas criarem lojas, magazines, edifícios, galerias de lojas e boutiques que hoje ameaçam fechar as portas definitivamente. É que as pequenas casas comerciais, no Brasil todo, podem ser abastecidas via internet, ou em grandes entrepostos comerciais.
Como pobre que fui, como milhares de outros e outras, de quê devo ter saudades? O que esta minha cidade amada perdeu que eu deva lamentar? Talvez a neblina que me lembrava o fog londrino que só conheço nos filmes, quando, à noite, nos invernos e primaveras, andando nas ruas eu voltava para casa, depois de uma jornada de trabalho numa casa comercial e horas de estudo no colégio noturno: nós subíamos sumidos no denso nevoeiro, sem medo, no entanto, pois praticamente não se ouvia falar em assaltos. Esta mesma neblina ainda perdura, embora o asfalto a desfigure, quando, ao amanhecer, eu abro a janela do meu quarto, no primeiro andar, da minha casa na Cidade Nova: a cidade inteira tornada invisível, recoberta pela cerração.
As grandes transformações foram mais na aparência, ou na forma, no revestimento, na camada de verniz, ou em bolsões na própria área urbana, não se espraiando em toda a vida social, na realidade. De fato, a vida da cidade de interior permaneceu ativa e colorida, cimentada por relações de vizinhança e camaradagem nos bairros e foi assim que criei meus filhos brincando com outras crianças, na rua Piazza e na praça do Bambu e no Caminho Ilhéus, ou na praça do Lelê, na mesma Cidade no Nova.
Pois, em Feira de Santana ainda se mantém, nos bairros populares, a vida colorida das relações de vizinhança e cordialidade. De bater no portão e pedir, como já o fiz sem nenhum constrangimento, um fósforo, ou uma xícara de açúcar, quando o supermercado ainda não abriu, ou sequer se encontrava aberto o mercadinho de dona Flávia. De deixar a chave da casa com dona Lia e Ferreira, ou “seu” Antônio, meus vizinhos da Cidade Nova.
Professor de uma universidade pública e bem conceituada, recusei-me a arrancar minhas raízes e mantenho minha casa na mesma Cidade Nova, nesta Feira de Santana, a terra de exílio e terra de acolhida, nesta encruzilhada perigosa onde todos os caminhos se encontram e todas as oportunidades podem estar nos olhando.
E, amando minha Feira de Santana, minha terra querida, de exílio e de acolhida, que mais posso fazer, senão trabalhar para “vê-la elevada”?