Não peço que deixemos a Xuxa de lado nessa discussão. Porque não precisa jogar pra lado nenhum aquilo que nunca teve posição relevante. Pra mim, ela nunca teve qualquer significado, a não ser a de uma mulher branka e milionária, forçando sorriso, vendendo simpatia e falando como uma débil mental, na fantasia perversa de um Peter Pan televisivo, eterna criança forjada na frente das câmeras, cantando pra menino pobre que “o que você quiser, o cara lá de cima vai lhe dar”.
Além de estragar a autoestima de gerações de meninas pretas que embalaram bonecas loiras enquanto sonhavam com a água embranquecedora de Macunaíma no pesadelo vendido como sonho de um país eugênico, ela serviu por décadas, na mesa farta da imbecilização televisiva uma oferta desmedida de música ruim, encenações picarescas e muita, muita exposição radioativa ao que há de pior no enredo televisivo do racismo indisfarçado, com suas pakitas que pareciam saídas de uma linha de montagem sueca, com sorridentes olhinhos nazistas de quem projeta um Brasil branco, no sonho branquialvo que embalou e embala a Globo, a mesma Globo que agora paga de inclusiva pra enganar militante carente de referências, sempre disposto a aplaudir qualquer biscoteiro branco que se diga antirracista no frensei vampiresco das redes e das telas.
Mas não é de Xuxa que precisamos falar. É do sistema prisional.
Porque se causou indignação aos bem pensantes a defesa enojante feita por ela de que em nome de um certo naziveganismo, os testes em animais sejam redirecionados para a população carcerária, não parecemos compartir da mesma indignação quando pensamos que nosso sistema de justiça, segue encarcerando gente preta e pobre num ritmo alucinante, agravado no neoliberalismo tardio e incapaz de abrir frestas em suas senzalas contemporâneas, mesmo numa pandemia global.
A prisão no Brasil é ilegal por natureza, quando enjaula cinquenta onde cabem cinco e seleciona sua clientela a partir de critérios visivelmente alheios até ao penalismo mais estreito, como raça e classe.
E toleramos isso com uma cumplicidade abjeta.
Como toleramos o aumento absurdo da invasividade penal e ainda demandamos mais penas, mais criminalização e mais encarceramento, inclusive quando defendemos pautas ditas progressistas como o ambientalismo, o combate à homofobia e o fim da violência contra a mulher e seguimos chancelando o penal como espaço por excelência de resolução da conflitividade social.
Seguir criticando Xuxa e seu posicionamento de fazer inveja a um diretor de Auschwitz pode nos levar a desperdiçar a oportunidade de descortinar o jogo de luz e sombra que envolve o encarceramento e sua interrelação com as necropolíticas do racismo à brasileira.
A prisão, como apontou Malaguti, dialogando com Wacqüant tem o poder de detonar fantasias de terror e desejo.
Que o nosso terror bem mocista supere a mera indignação com a frase da loiríssima milionária vegana inclusiva bichoafetiva e seja capaz de encampar desejos de outra ordem possível. De preferência, mirando na única saída que me parece defensável: o fim da prisão.
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