Chocaram todas no mesmo dia.Era um sábado de manhã, nos preparávamos para ir ao Morro das Flores quando meu tio Jô nos gritou do quintal e vimos os ovos se mexendo, os biquinhos aparecendo e, uma hora depois, aquela inundação de pintinhos. A princípio, ninguém via nada de mal, até pelo contrário, as onze galinhas nos presenteavam com aquele espetáculo e, durante muitos dias, tivemos a casa em festa com tanto pinto crescendo. A nossa inquietação começou quando conferimos um por um e descobrimos que eram todos fêmeas. Todos. Cento e tantas pintas; nenhum macho. Aqui tem dedo do demo, disse minha avó, mas ninguém ligava pra ela, vivia sentada nos cantos falando besteira. Tia Filó é que quase não dizia nada, cuidando do neném.
Um dia, todas as galinhas, as filhas a essa altura adultas, desapareceram de casa. Reparamos isso pelo silêncio repentino. Você ouviu, Jô? perguntava meu outro tio. As galinhas, Samuel? respondeu meu tio Jô, embora também perguntando. E tio Samuel resolveu dar uma espiada no curral das cabras, embaixo do juazeiro, na capoeira do roçado, no tanque de Nemias – nem sinal delas. Há pouquinha hora ainda estavam aqui, disse meu tio Jô. Bem, não falo com certeza, talvez tivesse sido pela manhã. Eu também tinha a impressão de que as ouvira há pouquinha hora, mas talvez tivesse sido mesmo pela manhã. Ou ontem?
Fiquei, então, imaginando se não teria sido raposa. Não uma raposa, claro, mas cem raposas. Cento e doze, que era o número exato, pois só dessa forma se evitaria qualquer algazarra das que não fossem agarradas no primeiro bote. Assim: as raposas apontariam cada uma a sua presa e, sem se deixarem descobrir, saltariam como relâmpagos sobre elas; o resto era aquilo, silêncio. Estava assim pensando quando tio Samuel perguntou: Será que não foi raposa, Jô? Meu tio Jô virou uma espoleta: Raposa, Samuel? Raposa, Samuel? Quantas raposas, Samuel? Você acha que, na redondeza, exista raposa suficiente pra atacar aquele mundo de galinhas sem que ouvíssemos um pio? E resmungou mais umas palavras, frisando a falta de juízo de tio Samuel.
Naquela noite, não se falou mais do assunto. Eu observava meu tio Jô, seu ar acabrunhado, nem eu nem tio Samuel tínhamos coragem de perguntar nada com receio de aborrecê-lo. Ao ir deitar-me, ficava ouvindo um morcego percorrer a casa, entrar na sala e sair pela cozinha, entrar no quarto de minha avó e sair no meu, que os morcegos penetram por qualquer fresta, dizem que eles são cegos e se guiam pelo ouvido, não sei o que ouvem eles de noite pra se guiar. E comecei a pensar se não teriam sido os morcegos que atacaram as galinhas na noite passada; morcegos havia muitos, não eram como raposas, e uns mil morcegos podiam ter caído de chofre em cima das coitadas e chupado seu sangue sem que elas tivessem tido tempo de soltar um ai. Ou então feito o que dizem que os morcegos faziam: tinham os dentes tão afiados que podiam chupar o sangue de um bicho sem nem acordá-lo, de tão afiados que eram seus dentes. Mas vi logo que não podiam ter sido morcegos, pois acharíamos os corpos no outro dia, morcego só bebe o sangue, não come ossos nem penas.
Tentei agarrar no sono; não conseguia. Pensava também se não teriam sido cobras, uma porção de cobras chegava sorrateiramente, abocanhava a garganta das galinhas e, uma a uma, iam enchendo a pança com elas, nenhum pio. Mas não me abalançava a saltar da cama pra levar minha ideia ao meu tio Jô, de forma alguma.
Mas acabava dormindo. E, ó, o dia mal clareava e olha elas ciscando no terreiro. Como se nada do mundo tivesse ocorrido. Meu tio Jô coçava o queixo, fazia um muxoxo e passava um rabo de olho em minha avó. E nossa vida prosseguia no seu ramerrão de sempre.
Mas, daí a dias, quando regressávamos do Morro, topamos com o terreiro coalhado de pintinhos. Pelo menos, uns mil. Eu não sabia se ficava alegre com aquela festa ou se me punha a matutar, como meu tio Jô. Minha avó, que ficara em casa, soltava risinhos de júbilo. Suspendi o rabo de umas quarenta, ela disse; todas fêmeas. Aqui tem dedo do demo. E prolongava bem a palavra demo, deixando meu tio Jô muito contrafeito. Cale a boca, minha mãe, resmungava ele. E, dirigindo-se para tio Samuel: Amanhã mesmo se há de dar sumiço nesses trens.
Reparei que meu tio Jô não estava nem um pouco alegre com aquilo, mas as pintas cresciam fortes e sadias. Eu e tio Samuel é que cuidávamos de alimentar a criação, com mandioca quebrada, maxixe, banana, milho, tudo que havia de sobra. Então, correu a notícia de que nossas galinhas eram obra do demônio. Ninguém as queria comprar; nem de graça. Tangiam-nas de suas roças.
Não demoramos a nos acostumar, mas era uma infernação: subiam na mesa, no armário, no telhado, despencavam sobres nossas cabeças, cagavam o chão. Tia Filó passava o tempo na varanda mostrando-as pro neném quando ele começava o berreiro. Olhe a galinha, neném! – como se fosse alguma novidade.
Um dia, novamente um sábado, elas sumiram. Percebemos pelo ar, havia qualquer coisa no ar, as folhas das bananeiras peneiravam como asas de gavião, a luz do sol tinha um tom mais amarelado que o de costume: alguma coisa nos fez alertar para o silêncio. Eu e tio Samuel saímos de casa ao mesmo tempo e já encontramos meu tio Jô de pé na varanda perscrutando os espaços. Das galinhas só o piseiro, o cisqueiro, o bosteiro em volta da casa. Depois, apareceu tia Filó com o neném esgarranchado no quadril, mas ninguém teve ação pra dizer nada. Minha avó veio se arrastando pelas paredes e ficou também escutando: não mencionou nenhum demo, acho que ela temia o olhar de meu tio Jô. Só bem depois, dentro de casa, o sol já querendo se pôr, é que meu tio Jô quebrou nosso silêncio: Você sabe pra onde as galinhas foram, Filó? Meu tio Jô fez esta pergunta num tom de voz que a gente não sabia se era mesmo perguntando pra saber ou perguntando pra dizer a resposta. Tia Filó pensou que ele sabia e disse: Não, Jô. Pra onde elas foram? Foram pro inferno, Filó, respondeu meu tio Jô aos berros. Foram pro inferno, você não viu quando elas chegaram aqui pra se despedir e disseram: Filó nós vamos pro inferno?
Depois da comida, eu fiz uma fogueirinha pra espantar as muriçocas, sabia que aquela noite não conseguiria dormir cedo. Minha avó se arrastou pra perto.
Aquele sumiço nos preocupava mais que o de antes. Talvez por suspeitarmos que elas regressariam no dia seguinte, não por não gostarmos da presença delas, pois já estávamos até acostumados, mas porque poderia acontecer de o terreiro aparecer inundado de pintinhos. Era assim, pelo menos, que eu pensava. Já podia ver dez vezes mais pintos e galinhas infestando ali tudo e minha avó dizendo que suspendera o rabo de uma porção delas e eram todas fêmeas. Vó, eu perguntei, por que é que bosta de boi queimada espanta as muriçocas? Elas não vão voltar, minha avó disse.
Fiquei algum tempo em silêncio. Minha avó dizia bobagens, quase sempre era assim. Mas o seu tom, desta vez, não era o de dizer bobagens. Deve ser porque a bosta tem um cheiro que as muriçocas não gostam, não é, vó? Minha avó futucava o fogo com uma varinha comprida e umas faíscas subiam. Jô é muito ingrato comigo, ela disse.
No outro dia, meu tio Jô acordou muito tarde. Pensávamos que ele iria perguntar pelas galinhas – elas não vieram –, mas não: meu tio se queixava de umas pontadas na boca do estômago. Ao meio-dia, ele começou a ter as visões. Ali ela – gritava apontando o vazio. Do tamanho de uma pessoa. E vem me beliscar.
Não sabíamos o que fazer com meu tio Jô, achamos que fosse fraqueza dos miolos. Não parecia aterrorizado com sua galinha gigante, a todo instante o víamos erguer-se de um salto e gritar – Vem, desgraçada! – com um porrete na mão. Por toda a tarde, até entrada a noite, meu tio Jô continuou labutando com essa galinha. Devem ter cansado os dois, ou meu tio dormiu e a visagem parou de pirraçar. Tio Samuel é que estava muito preocupado, falava até em levá-lo a Doutor Claudionor, em Rui Barbosa, se ele não amanhecesse melhor.
Não amanheceu. Quatro homens não puderam metê-lo na kombi que tio Samuel havia fretado; talvez pelo respeito que meu tio Jô impunha quando gritava: Me larguem, seus filhos de uma égua. Tio Samuel decidiu, então, aproveitar a kombi e ir consultar Doutor Claudionor, ele podia passar uma receita de longe mesmo. E chamou-me para acompanhá-lo. Não vão chegar a tempo, disse minha avó.
O carro soluçava em qualquer ladeirinha e, às vezes, precisávamos apear para dar uma ajuda. A mula sabarone chegava mais ligeiro do que essa porcaria, murmurou tio Samuel. Na quarta ou quinta dessas paradas, que parecia definitiva, alcançou-nos um jeep. Samuel é o senhor? – perguntou o moço que o dirigia. – Mandaram dizer que o senhor voltasse.
Havia pessoas na varanda. Receberam-nos em silêncio. Cederam-nos lugar. Tia Filó apareceu com o neném no braço: Ele está dormindo. Graças a Deus.
Então nos explicaram os passos da cura de meu tio Jô: ele se enfurecera em dado momento e saíra a correr atrás da tal galinha, xingando-a e dando-lhe pauladas. De longe observavam sua loucura, dando pauladas no ar. E, de repente, como se tivesse dado cabo da galinha, ele jogou o porrete para um lado e ficou algum tempo olhando pro chão. Depois voltou pra casa, deu boa tarde a todos e pediu água a tia Filó. Contaram-nos também que haviam encontrado minha avó no seu quarto, ela propriamente não, mas seu corpo, o corpo sem a cabeça.
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