Não me acharão nunca. Jamais terão a ideia de vir ao cemitério, conheço aquela gente. O morto é que anda zanzando por aqui uma ou outra noite, da primeira vez temi alguma coisa, agora me acostumei. Não parece aborrecido, até dá a impressão de que lhe fiz um benefício.
Eu gostava de Moreira. Mas minha reputação ficaria em jogo e nunca admiti isso, duvidar que eu não soubesse não só a letra como a pronúncia exata de qualquer música dos Beatles já era querer ir longe demais. Ele podia saber Michelle, Yesterday, essas mais conhecidas. Mas me irritar com engrolações de voz, passando por conhecedor diante dos palermas que não tinham como descobrir a farsa, claro que só podia dar naquilo. Ao meter-lhe a garrafa no bucho não pensei que fosse matá-lo, queria apenas apagar sua voz, que parecia sair da barriga.
Ele mastigava Lady Madonna quando dobrou as pernas e me chamou de filho-da-puta maluco. Eu respondi que filho-da-puta era ele e aí não vi mais nada, parece que Moreira não disse mais nada. Aconselharam-me a fugir, fugir de quê, eu perguntei, mas acabei fugindo, a polícia de Andaraí ia logo saber do fato e o flagrante era pior. Mas sei que não me acharão, devo ter emagrecido uns cinco quilos de comer mamão e rolinha crua e tenho a consciência tranquila, sobretudo porque o próprio Moreira já conversa comigo e não se mostra ressentido, até parece que ainda vive no mudo de cá, conta-me casos, comenta um filme que passou e fala da saudade que sentem de mim. Esta noite ele apareceu, até bem-vestido, eu comia uma rolinha que peguei quando ela estava dormindo, ofereci-lhe um pedaço ele fez cara de nojo e me disse que ao cair ainda tentou desviar-me, fora azar meu escorregar bem naquela hora, a garrafa quebrada escapulir, rolar no chão e eu ir de pescoço na ponta mais afiada. Acho que Moreira estava inventando qualquer coisa para que eu não ficasse com remorso.
Perguntei-lhe pelo buraco na sua barriga, se fora fundo, ele levantou a camisa, tinha sido só um talho raso, levara seis pontos, o que eu fizera era coisa de maluco, afinal todo mundo sabia que ele não sabia inglês nenhum, só conhecia mesmo Yesterday, Michelle, Lady Madonna e Penny Lane, agora eu fazia uma falta danada, ninguém para jogar gamão, o pessoal era fraco, muito mal passavam do sete-e-meio ou uma dama mixuruca, gamão ninguém sabia, era chato pra burro não ter parceiro. Moreira nunca me falou da polícia de Andaraí, de modo que até fiquei bem à vontade com ele no meio dos túmulos, no dia dos mortos apareceram umas cinquenta pessoas e não fiz o menor esforço para me esconder, me viam e tudo, mas ninguém ligava. Eu disse a Moreira que não me importava mais com nada não, ia voltar à vila, mas não me esqueceria dele, viria vê-lo sempre. E já estava pensando numa coisa: decorar tudo de Charles Aznavour.
Antonio Brasileiro
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