Cansei desse “fica em casa”.Dessa transferência de responsabilidade, baseada na culpabilização do indivíduo.
Cansei também das reportagens que criminalizam as estratégias de lazer dos pobres, a aglomeração dos trabalhadores na festa clandestina, no paredão, na praia.
Não faz sentido algum dizer ao cara que pega ônibus lotado de segunda a sexta, se espremendo nas versões urbanas dos tumbeiros que compõem nossa mobilidade urbana, que ele é um escroto, irresponsável, egoísta insensível, homicida em potencial por querer tomar uma cerveja no barzinho no fim de semana, ou ir na igreja, rodar no espírito, num retetê de Jesus pra aliviar a tensão acumulada.
É a vida. É a morte. Vacina existe. Quem morre de Covid no Brasil hoje é morto pelo Estado. Por inação. Omissão. Decisão política do bolsonarismo de confrontar a ciência, debochar dos consórcios internacionais, investir pesado em porcarias com o “kit de tratamento precoce”.
Além do Estado, o Capital. O empresariado, que pressiona frontalmente para não se adotar as medidas de isolamento defendidas pelos cientistas.
Eu, por exemplo, não posso ficar em casa. Não dá mais. Sou professor e gestor numa escola pública. Pego pelo menos quatro transportes por dia pra ir lá. Mas não fico lá sentadinho no ar condicionado, não. Sigo para, no mínimo 22 comunidades rurais com kits de alimentação a serem entregues em diferentes pontos do maior distrito de Feira de Santana. Contato direto com kits que passaram de mão em mão. Com outros gestores. Motoristas, carros, funcionários, estagiários, transportes lotados, ônibus, ligeirinho, famílias, gente que vem pegar o kit sem uma máscara na cara. Gente que nem tem máscara. Ou nem nunca usou. Gente é isso.
Pra completar, mais de setenta por cento dos meus alunos não têm acesso regular à internet.
Coordeno uma equipe de 15 professores que produzem material didático para o corpo discente da escola, já que as tais aulas síncronas aqui não seriam possíveis. Amanhã é dia de passar o dia na escola, imprimindo. Com duas impressoras lentas e engasgadas. Um calor equatoriano. E muito contato. Funcionários. Estagiárias. Logo mais, contato com quase 400 famílias para entrega deste material. Claro que usarei luvas, máscara, àlcool. Mas conheço muita gente que se cuidava direitinho e se contaminou.
Por isso, quero pedir que não gastem o latim de vocês me mandando ficar em casa. Não vai dar. É demais isso pra quem trabalha 60 horas, em duas escolas e está em mais de 20 grupos de zap, escrevendo monografia e trabalhando presencialmente e remotamente, sem parar.
O tempo que vocês ficam aí gritando pra eu ficar em casa, me chama pra sair de casa e ir pra rua pressionar por vacina, impeachment, democracia. Você vai dizer que tem uma pandemia rolando. Mas a pandemia não pede dois altos quando eu pego o transporte lotado pra ir trabalhar. Prioridades.
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