Quando Bode veio do mato afivelando o cinto, já foi aos berros:
– Quem é o ladrão que está mexendo nas minhas mamonas?
Biziu respondeu na tampa:
– Mamona, é? E isso aqui? E isso aqui? É só mamona, é? – E ia despejando a capanga e separando as pedras.
– As pedras eram pra se visse um passarinho – disse Bode, recolhendo sua munição. – Eu não ia meter pedra em ninguém, que eu não sou doido.
– E na hora da confusão – disse Biziu –, como é que você ia ter tempo de separar as pedras? Ahn? Olhe aqui pra você.
Ajuntou gente dos dois países e todo mundo fez ahn. E a guerra foi adiada por mais uma hora, havia a suspeita geral de que aquela não seria um guerra convencional; as capangas deveriam estar, portanto, bem cheias.
Desapareceram todos. Compreendi também que pelo menos umas três pedrinhas devia ter comigo, mas além disso troquei as mamonas menores ou as mais leves por graúdas. Aos poucos fomos nos reunindo no adro da igreja, que era o ponto.
O que eu não tinha reparado, e que comecei então a reparar, foi o peso das capangas: havia delas que só faltavam torar a alça. E os inimigos se olhavam com um rancor!
– Acho bom a gente começar logo – gritou Bode, que era sempre o mais impaciente; sua capanga precisava ser pegada por baixo, a alça só não aguentava.
– Você está muito apressado, Bode – disse Biziu, mas de um jeito que fez a gente prestar mesmo atenção na capanga de Bode.
Ninguém disse nada. A gente podia ver que a capanga do chefe inimigo era cheia de pontas, não era de morrinhos arredondados como as mamonas fazem. Mas não era só a de Bode, fui reparando aos poucos; tanto do nosso país quanto do inimigo havia capanga pesada. A cobertura era mamona, aquelas umas que ficavam por cima, eu também fiz isso, mas pedra mesmo eu só botei cinco. Um dos nossos pediu um tempo pra ir também no mato, fingindo dor de barriga. Não demorou a que outros o imitassem. Bode e aqueles que estavam satisfeitos sentaram-se na sombra e fingiram estar tirando um cochilo. Em pouco todos nós, os em inferioridade, esgaravatávamos o chão desenterrando pedras. Podíamos acompanhar o trabalho um do outro, mas sempre de longe. Havia um quê de pudor em tudo aquilo. Quando acontecia de nos aproximarmos demais, colhíamos distraidamente umas mamonas e ficávamos com elas na mão até nos afastarmos. Víamos com frequência o chão remexido; havia covas do tamanho de uma manga.
Bode e os outros nos viram ir chegando e não disfarçavam o espanto. Nem falar falavam. Quando estávamos todos reunidos, Biziu conferiu a contagem rapidamente e disse:
– Agora podemos começar. Cara ou coroa pra ver quem escolhe o lado.
Confesso que estava satisfeito com minha coleta. Havia capangas mais deformadas, sinal de balas maiores – mas as minhas, eu tivera o cuidado de selecionar, as que cabiam na curva do dedo indicador eram as melhores. A gente notava entretanto que Bode e os outros estavam impacientes.
– Vamos, Bode – dizia Biziu. – Cara ou coroa.
Bode apalpava sua capanga, conferia as nossas.
– O sol está muito quente – disse ele.
Ganhava tempo, arquitetava; nós, dávamos pressa.
– Detesto gente covarde – eu disse, mas sem endereço. Senti que me olhavam, preferi não levantar os olhos.
Ao se afastarem do ponto, Bode e os dele, compreendemos que buscavam pé de igualdade; o pretexto era que precisavam se reunir em segredo para traçar novos planos, mas sabíamos que iriam cortar volta pelo fundo da igreja e refazer as capangas.
– Com planos ou sem planos, vocês serão derrotados até o último homem – disse Biziu, empostando um pouco mais a voz. Olhamo-nos uns aos outros e sorrimos pra dentro.
Nada mais embevecedor que o gosto da vitória. Para ser mais preciso, o gozo; melhor ainda: o antegozo. Deitado na fresca, eu observava o voo das andorinhas e o freio de suas asas no ar ao se aproximarem do beiral do telhado. Alta era a igreja, e as nuvens branquinhas, deslizando no céu, ornavam minha satisfação. Apalpava carinhosamente minha capanga e repassava no pensamento as pedras mais maneiras.
– Pronto, podemos começar – era Bode e os seus.
Falavam alto e com ares superiores, mas não vimos suas capangas.
– E as capangas? – perguntou Biziu.
– Deixem com a gente – disse Bode. E seus comparsas deram um risinho matreiro.
– É – balbuciou Biziu –, podemos começar.
Mas aquilo não nos cheirava bem. É verdade que não se combinara ter que mostrar a munição, mas também não se combinara não mostrar.
– É – repetiu Biziu. – Vamos começar.
Mas Biziu não tinha pressa, a gente já estava vendo que ele não ia cair em esparro, falava por falar.
– Me dá a moeda – dizia Bode. – Cara ou coroa?
Bode tinha pressa e foi logo jogando a moeda pra cima. Mas ninguém disse nada.
– Está bem – ele disse. – Vocês podem escolher o lado.
– Não – falou Biziu –, ninguém quer esmola aqui não.
– Então grite logo – tornou Bode. – Cara ou coroa?
– Esta moeda não presta não – inventou Biziu. – Vamos pegar outra.
– Eu tenho uma lá em casa – falei.
Minha casa era perto, Biziu me despachou prontamente. Bode e os seus inspecionavam a moeda rejeitada, Biziu falava grosso:
– Uma moeda nova pra não ter lambança, conheço muito bem vocês.
Quase ia esquecendo de pegar a moeda. Tive que saltar uns dois muros para cortar volta e quando entrei no matinho de detrás da igreja, vi as capanga numa ruma. Se muito cabiam, cabiam seis pedras em cada; a pedra menor enchia uma mão. Voltei pelo mesmo caminho.
Biziu compreendeu logo que eu trazia a notícia fresca. Chamou-me a um lado como se quisesse outra coisa e eu lhe contei o que vira. Quando ele voltou, já foi pra anunciar que achava boa aquela tática de não mostrar as capangas, e que nossa turma ia adotá-la. Afastamo-nos sob protestos.
Enquanto trocávamos nossa munição por pedras iguais ou maiores que as do adversário, eles trocavam a sua por facas, foices, fuzis, mísseis, ogivas nucleares…
E esta história há de se acabar? Quem sabe! Por enquanto vamos ter que suspender a pena, pois a noite se aproxima, e tanto nosso chefe como o chefe adversário jogam ponga – vocês sabem como é ponga, um quadro riscado no chão em que se traça um xis pegando os ângulos e uma cruz nos intervalos do xis. Em Ruy Barbosa se joga com três pedrinhas; quem colocar suas pedras em fila, ganha.
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