Legiões de homens estropiados, com suas armas toscas, a bater-se contra o exército nacional: foi isto o que se viu, do amanhecer ao pôr-do-sol daquele 1 de outubro de 1897. Os mortos, todos: os derrotados. Canudos, o nome do palco destroçado, um arraial troncho de vinte mil pobres almas do qual uma só casa não restou de pé; jagunços, um feio nome facínora, seus heróis; o fanático Antonio Conselheiro, o comandante-em-chefe. Foi a mais absurda guerra da história do Brasil. E pensar que tudo ficaria tão só esbranquiçada memória não fosse aquele sujeito chamado Euclides a ter presenciado!
Misto de literatura e história, a bem dizer – e com uns certos laivos de ciência, acrescente-se (para bem ou para mal) -, Os sertões é para nós, brasileiros, um clássico. Nossos livros didáticos, pelo menos até os anos 60, registravam, para que a bem assimilássemos, a frase magna da obra: “O sertanejo é antes de tudo um forte.” Algo de fato altissonante; barroquizante – se assim nos podemos expressar. Mas, absolutamente, bem pouco distante da verdade.
Canudos era só um amontoado de casebres. O homem que a comandava, Antonio Conselheiro, tinha um nome emblemático e histórias. Adoravam-no. Em suas prédicas, aquele jesus cristo dos ainda mais miseráveis exclamava apontando os morros e rios circundantes: serão montanhas de cuscuz e rios de leite. E vociferava, dirigindo-se talvez aos opressores do litoral: O sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão. As gentes das redondezas, e ainda de mais distante, vinham para escutá-lo.
Mas o fato é que a fome, essa, grassava.
Era este o estado de coisas que o engenheiro Euclides da Cunha encontrara ao desembarcar no sertão baiano naquele outubro de 1897. Vinha cobrir a guerra para O Estado de S. Paulo, um jornal do sul. Chegara nos últimos dias. Mas vira muito. Vira praticamente tudo. Foi em grande parte com base em seu depoimento que os historiadores que vieram depois redigiram seus escritos. Eis porque se tem Euclides como um dos criadores da nossa realidade.
Em 1902 o livro foi publicado. Fruto de quatro anos (desde o fim da guerra, em 1897) de trabalho para ordenar e aprofundar o conteúdo das reportagens, mas sobretudo da memória abalada, Os sertões já nascia um clássico. Liam-no, discutiam-no. Os quatro anos passados, muito longe de fazerem esquecer o drama de uns miseráveis, reavivaram um certo difuso sentimento de solidariedade de uma nação. Fiel a Taine, Euclides da Cunha sabia do valor que a intensidade da descrição conferia ao objeto descrito; construções ambas, história e ficção – parecia ele intuir – só sobrevivem pelo estilo. Debruçado sobre a volumosa papelada das anotações, o estudioso já não se interessava pelo simples e honesto registro do fato; queria edificá-lo, imprimi-lo indelevelmente nos corações. Daí o artífice da palavra e da imagem. Se, por vezes, esse estilo parece veicular ideias ainda mal digeridas de uma época, como na descrição do valente Pajeú:
Capitaneava-os, agora, um mestiço de bravura inexcedível e ferocidade rara, Pajeú. Legítimo cafuz, no seu temperamento impulsivo acolchetavam-se todas as tendências das raças inferiores que o formavam. Era o tipo completo do lutador primitivo – ingênuo, feroz e destemeroso – simples e mau, brutal e infantil, valente por instinto, herói sem o saber – um belo caso de retroatividade atávica, forma retardatária de troglodita sanhudo aprumando-se ali com o mesmo arrojo com que, nas velhas idades, vibrava o machado de sílex à porta das cavernas…
por muitas outras, é justamente ele (esse mesmo estilo) que nos faz volver àquela “realidade maior do que a realidade”, dos versos de Drummond, também nitidamente vislumbrada por aquele outro poeta em:
Cousas há i que passam sem ser cridas,
E cousas cridas há sem ser passadas.
Não que o estilo seja o justo e correto. O próprio Euclides já bem via isto quando escreveu: “Se um grande homem pode impor-se a um grande povo pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam com igual vigor as multidões tacanhas.” Mas é o estilo, sim – dizemos –, o fadado a permanecer. Isto é decerto uma defesa da literatura, reconheço. Mas a vida escrita é, de certo modo, literatura. A “Tróia de taipa dos jagunços”, como Euclides denominava Canudos em sua exaltada evocação de Homero, é, queiramos ou não, literatura. Não houvesse quem a descrevesse, e com as exatas palavras da arte literária, teríamos no máximo uma mancha de brutos e quase indistintos fatos perfeitamente ilháveis no espaço e no tempo. A luta do dia 1 de outubro, por exemplo, à qual o escritor assistira de binóculo desde os montes que rodeavam a vila rebelde, ao lado das guarnições e seus canhões tonitroantes, é descrita com minúcias de pesquisador, mas é sobretudo o estilo exímio de grande romancista o que se mostra em toda sua pujança. Os exemplos são inúmeros. “Fechemos este livro.” – escreve ele na penúltima página:
Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.
É o estilo a realidade instaurada por Euclides. Perpassa todo o livro. Ainda ali, próximo à citação acima, mas não exatamente o gran finale, vemos: “Caiu o arraial a 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5200, cuidadosamente contadas.” A última página, propriamente, é dedicada ao Conselheiro. À exumação do seu cadáver, morto e enterrado semanas antes. “Dádiva preciosa” – escreve Euclides – “único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra!” A palavra opimos que registramos não é usual; quer dizer “excelente, rico”. Mas em “despojos opimos”, se quer dizer (vem dos romanos) as armas do general inimigo, morto e despojado pela mão do general vencedor. Que despojos!
O homem é quase uma extensão da terra em Euclides. A frase que abre um dos capítulos desta seção do livro é aquela mesma: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte.” Só que, antes de tudo, o que Euclides revela desse homem é a sua só aparência. “É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos.” Mostra-lhe a abatida postura, a emprestar-lhe aquela humildade deprimente.
A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. (…) E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo – cai é o termo – de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
Entretanto, diz, toda esta aparência de descanso ilude. Transmutações completas são operadas quando de uma necessidade, súbita precisão.
O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias.
A precisão súbita pode ser, por exemplo, recolher uma rês tresmalhada; a descrição tem algo de cinematográfico e as palavras são de um poeta (…acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria…):
Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante, pela caatinga garranchenta; ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha, ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.
A biografia de Antonio Conselheiro, que segue a descrição do homem sertanejo, coloca-nos como que diante do cenário prestes a se abrir: o da guerra. “…E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos…” Conta Euclides que já naqueles últimos dias da guerra, em 1897, um caboclo lhe dissera ter conhecido aquele Antonio Mendes Maciel, apelidado o Conselheiro, nos sertões de Pernambuco. Desde moço, misterioso; andando sem rumo certo, indiferente à vida e aos perigos, dormindo ao relento à beira dos caminhos, “tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se das rancharias dos tropeiros, aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os improvisos e as violas festivas.”
A beleza era-lhe a face tentadora de Satã – diz Euclides. “O Conselheiro extremou-se mesmo no mostrar por ela invencível horror. Nunca mais olhou para uma mulher. Falava de costas mesmo às beatas velhas, feitas para amansarem sátiros.”
O homem não só aconselhava ou fazia sermões; também escrevia. Sabia articular seus pensamentos de algum modo e impressionava. Profeta, viera para anunciar o fim dos tempos.
“…Em 1896 hade rebanhos mil correr da praia para o certão (sic); então o certão virará praia e a praia virará certão./ Em 1897 haverá muito pasto e pouco rasto e um só pastor e um só rebanho./ Em 1898 haverá muitos chapéus e poucas cabeças.”
Só então, depois de ter dissertado sobre a terra, o homem e o herói do livro, é que Euclides da Cunha nos introduz na cidade-fortaleza, Canudos – “uma tapera de cerca de cinquenta capuabas de pau-a-pique” no ano de 1890 –, em seis anos transformada na “Tróia de taipa dos jagunços” e suas quinze a vinte mil almas. O livro nos toma, então, o fôlego e não mais queremos abandoná-lo. Euclides elenca os outros personagens: José Venâncio, Pajeú, Lalau, Chiquinho, João da Mota, Pedrão, Estêvão, Joaquim Tranca-pés, Raimundo Boca-torta, Chico Ema, Norberto, Quinquim de Coiqui, Antonio Fogueteiro, José Gamo, Fabrício de Cocobocó, Macambira, Vila Nova, João Abade, Antonio Beato, José Felix, o Taramela, Manuel Quadrado.
Que durmam em paz e nos perdoem.
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