Dilthey escreveu: “Com os olhos dos grandes poetas percebemos o valor e a conexão das coisas humanas”. No entanto, o grande mundo pouco quer saber de poetas. O lastro da espécie preserva sua caverna. Há duzentos anos se alertava para os tempos indigentes: vivíamos tempos indigentes, já os poetas ecoavam menos nos corações.
Qual é a real dimensão dessa indigência?
Valeria a pena se estudar isso mais profundamente. Não basta dizer que vivemos tempos cada vez mais avessos à poesia: é preciso verificar se os tempos indigentes não foram, realmente, todos os tempos. A rigor, excluídos talvez alguns decênios da Grécia antiga, não se pode dizer que a grande arte esteve sempre junto do homem comum. Quando falamos aqui da poesia, referimo-nos à grande poesia – e, nesse caso (resguardadas algumas exceções, se é mesmo que elas existiram), o natural sempre foi uma adoção cautelosa. A grande poesia jamais foi uma oferta, nunca esteve aí para ser tão só colhida: disposições especiais são exigidas para abordá-la. O sentido do belo, sem o qual não há nenhuma grande poesia, não é acessível a todos. E mais: assim como outros ramos do conhecimento, a poesia também se desgarrou do lastro meramente biológico do homem e já não comunga com os mesmos esquemas de sobrevivência, aí implícita sua percepção de mundo. Não que em outros tempos tivéssemos uma mesma percepção; talvez jamais tenha havido essa distribuição equitativa. Isso, dissemos, mereceria um estudo mais aprofundado. No momento, porém, queremos só constatar a maior consciência desse fato pelos próprios poetas, que os leva a crer em coisas como tempos indigentes.
Esses tempos não eram vistos por Buda ou Platão; os homens eram o que eram, e cumpria, isto sim, ensiná-los. A consciência de que estavam aptos a fazê-lo, não se discutia. Para Buda, eram poucos os que tinham a visão suficientemente clara para escutá-lo, mas o que lhe importava era transmitir-lhes suas descobertas sobre as coisas do mundo. Por certo que Buda confiava arrebanhar mais ouvintes, multiplicar o número de despertos. Mas, aqui, o que nos interessa sobremodo é alertar para a certeza que o dominava, a força dessa certeza moldadora. Buda e Platão, que tomamos como nossos primeiros exemplos, não foram, a rigor, poetas – o que não tira o valor de nossa argumentação: sábios, filósofos ou poetas fazem todos parte de uma mesma linhagem, e se estão iludidos, esta ilusão não é propriamente deles, mas de todos os homens.
É disso que estamos falando: da certeza que sempre envolveu alguns dentre nós. Essa certeza é que foi ferida. Apontar a existência de um “tempo indigente” no correr do tempo (mais exatamente: um presente indigente), não seria isto muito mais uma justificativa para o irromper dessa insegurança? E caberia, a rigor, esse estar inseguros quando se trata de verdadeiros poetas, criadores de deuses?
Os deuses são criações, dissemos. Brahma e Mara traduzem dilemas. Nossos dilemas. Passamos um dia a tê-los porque a interrogação entrava em cena. Essa devoção do pensamento, como a chamava Heidegger –¬ à interrogação –, dotava-nos de ótima ferramenta para que melhor nos convencêssemos daquilo de que, no fundo, já estávamos certos. A mitologia indiana, parece-nos, jogava aqui com cartas marcadas: era Brahma o vencedor, e foi esse deus que fez Buda pensar nos homens e se decidir a ensiná-los. Esse jogo é decerto aplicável também a Platão, mas o filósofo foi mais ponderado. Tão logo ele conclui sua fábula da caverna, interpreta-a como “uma subida para o mundo lá de cima e a contemplação das coisas que ali se encontram com a ascensão da alma para a região inteligível”, mas para completar logo em seguida que esta é sua “humilde opinião”, e “só a divindade sabe se está certa ou errada.” Como vemos, os deuses continuam presentes. Esses deuses (e Platão também sabia disso) supriam mais uma vez a lacuna deixada pela razão na sua impossibilidade de abarcar com seu discurso certas esferas do saber – como a da poesia, que nada sabe senão de si mesma e só a si mesma pode mostrar. Não que isto seja uma limitação, o poético ensimesmado, visão de mundo por uma fresta. O que se quer é muito mais um posto privilegiado para ela, que é mostrar o inexprimível.
O termo “inexprimível” tem pés de chumbo – muito difícil é carregá-lo, dar-lhe as asas que a leveza das coisas verdadeiramente requer. Wittgenstein teve a exata percepção disso que estamos chamando de leveza. “Aquilo de que não se pode falar, deve-se calar” – escreveu. Leva-nos a algo onde campeia o mistério, palavra usada pelo próprio filósofo para “pano de fundo” daquele quê de árido do seu filosofar: “O indizível (o que me parece cheio de mistério e que não sou capaz de exprimir) forma talvez o pano de fundo em virtude do qual o que posso exprimir adquire uma significação.”
Mas Wittgenstein não era poeta. Fosse poeta buscaria falar justamente daquilo de que não se pode, para que se soubesse que é exatamente sobre essa impossibilidade que se funda toda a apreensão. Os olhos dos grandes poetas, percebendo, para nós, o valor e a conexão das coisas humanas, não significava para Dilthey a apreensão dessa impossibilidade. Para ele, as coisas humanas, muito embora dolorosas e muitas vezes insondáveis, eram as tangíveis. Os poetas existiam para expressá-las. Não na sua “nudez”, se há algum sentido nesta palavra, mas na sua finitude. Daí a fantasia. Não concordamos, porém, com Dilthey. Não há aquela “nostalgia de algo permanente, não sujeito a mudança, subtraído à pressão das coisas” – como ele queria. A poesia é sua própria realidade. Seu direito à existência ou não existência não está no compará-la à concretude das “coisas”. Subtrair-se à pressão da realidade é um belo modo de pensar, mas este pensar, assim negativo, não nos parece inerente ao ser do homem. Este pensar o herdamos. O animal indefeso que fomos ao longo da nossa evolução biológica legou-nos essas marcas do temor: nove décimos de nossa existência, senão mesmo toda ela, foram marcados por este pensar-sentir noturno e assustadiço. “Sublimar” tudo isso, como já foi dito, não nos parece o correto; este conceito, sobre carregar em si a mesma carga negativa de todas as fugas, reafirma tão só o antigo temor. Não se trata de uma resistência à pressão imposta pela realidade. As coisas não têm “realidade” alguma. Também este termo está carregado de negatividade, ao deixar subentender qualquer coisa que os poetas teimam em disfarçar, maravilhosas crianças que são. Há, portanto que não se deixar emaranhar por esta herança.
A superação do antigo psiquismo, contudo, não se dá em um momento. Uma sucessão de poetas – o que pode levar uns bons séculos – talvez seja necessária para que algo se mova.
Mas é assim que deve ser.
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