O FILÓSOFO
Poucos homens gozam do privilégio de manter um bom número de amigos em torno de si. A vida moderna, calcada na pressa, está longe de se harmonizar com a belíssima arte de ser amigo. Pois ser amigo é fazer silêncio; na verdade, tudo que é penetrado de beleza nasce do silêncio.
Um dos homens a gozar desse privilégio foi o filósofo grego Epicuro. Ele dizia: “De todas as coisas que nos oferece a sabedoria para a felicidade de toda a vida, a maior é a aquisição de amizade.”
Esse homem, Epicuro, não foi um pensador original como o foram tantos dos seus antecessores; suas ideias fundamentais foram inspiradas em Demócrito. Contudo chegou a ter prestígio e a influenciar pessoas, e seu nome ainda hoje é lembrado, embora, na maioria dos casos, sob a forma deturpada de um grosseiro sensualismo.
À época em que Epicuro viveu – fins do século IV e inícios do século III a.C. – já não mais existia aquele fulgor intelectual que deu a fama à antiga Grécia: Ésquilo, Sófocles, Heráclito, Fídias, Sócrates, Demócrito, Platão, todos eles já estavam mortos. A juventude de Epicuro coincidiu com o fim da vida de Aristóteles; sua época foi, portanto, a da transição para o irreversível declínio da cultura grega.
As épocas críticas de declínio, onde o tônus positivo e otimista não consegue mais se sustentar, forjam no homem uma filosofia acomodatícia, resignada. O objetivo do conhecimento deixa de ser a busca da verdade, da grande verdade; o que o homem procura é apenas a sua verdade particular, a felicidade. A filosofia só tem valor se libertar as paixões da alma, diz Epicuro, reconhecendo embora que o próprio filosofar auxilia essa libertação, dissolvendo “todo o desejo incômodo e inquieto.” Daí a sua distinção entre uma falsa, ilusória filosofia, e uma filosofia verdadeira, apaziguadora de instintos.
O ideal do sábio é estar tranquilo. Nisso também concordava com a “plenitude comedida” de seu mestre Demócrito. Este dizia: “Aquele que quiser viver em tranquilidade, não deve se agitar demasiado.” Dizia Epicuro: “O essencial para a nossa felicidade é a nossa condição íntima.” E completava: “E desta, somos nós os amos.”
Era um homem cheio de ternura. Todo aquele que se aproximava da sua casa – do seu jardim, como se diz mais frequentemente – era de imediato arrastado por seus sábios conselhos. Decerto que muito do que se sabe sobre ele está envolto naquela amável adulteração dos seus mais queridos discípulos e dos posteriores adeptos da sua escola de pensamento e de vida. Mas algumas coisas podem ser tidas como verídicas, tais como a sua bondade e delicadeza, sua resistência aos sofrimentos, sua frugalidade e pobreza. “A quem não basta pouco, nada basta”– dizia.
O POETA
A natureza é como um imenso ser; espantosa é a semelhança que guarda o todo com suas partes. A realidade última do universo pode caber, inteira, no grão de areia. O um e o múltiplo se tocam.
Nenhum desses conceitos, por certo, é original. Muitos homens, em muitos lugares, os formularam. Na verdade são sempre poucos os que compreendem alguma coisa, seja o que for.
De modo que, desde cedo, a posse do conhecimento forçou uma radical divisão da humanidade; provavelmente a única divisão real da humanidade. Diríamos mesmo: das humanidades. A posse do conhecimento verdadeiro é, sem dúvida, a única forma justa de estratificação – não a estratificação no sentido social, mas no sentido mesmo de ser humano.
Dentre as descobertas consideradas básicas, a da identidade do Um com o Todo é a que mais constantemente tem acompanhado o homem. Foi talvez no Oriente onde, por primeiro, aflorou tal descoberta. E foram poetas orientais aqueles que, bem mais tarde, melhor a formularam em palavras. Alguns conseguiram ser espantosamente objetivos, como Sôsan, que disse: “O Um é o Todo, o Todo é o Um. Se isso for compreendido, não precisas mais te lamentares de que não és perfeito.” Yôka Daishi, já ciente da unidade de todas as coisas, dizia: “Conheces tu aquele tranquilo sábio que ultrapassou o aprender e não se aplica a coisa nenhuma?”
Esse estado de suprema sapiência guarda, por certo, embora sem a menor sombra de arrogância, a consciência do próprio valor e de ser distinto do rebanho. É o mesmo Yôka Daishi quem, sutilmente, diz: “Não há árvores de inferior qualidade no bosque dos sândalos.”
Explicar um poema – ou versos de um poema – é não entender o poema. A verdadeira compreensão da poesia assemelha-se à verdadeira compreensão: ou se compreende ou não se compreende, não há intermediários. Explicações intermediárias dão a conhecer apenas as próprias explicações intermediárias; o poema em si permanece inabordado. É confundir o dedo que aponta com o objeto apontado, diria Yôka Daishi.
Yôka Daishi viveu na China. Era um dos discípulos favoritos do Sexto Patriarca da seita Zen, chamado Yeno ou Hui-Neng (638-713). Seu Poema da Iluminação é uma dessas obras que se pode realmente considerar como algo superior. Grande parte da sua beleza se perde, naturalmente, ao ser traduzido, mas mesmo o que se pode colher numa tradução em língua ocidental ainda tem força para fazer vibrar profundamente dentro de nós.
Alguns dos seus versos, prenhes daquele sadio orgulho dos iluminados, nos fazem lembrar o cognominado “Obscuro”, que viveu na Grécia treze século antes dele: Heráclito. Como se pode perceber nos escritos de Heráclito, depreende-se igualmente dos versos de Yôka Daishi que, de certa forma, a ignorância dos seus contemporâneos o magoava. Contata-se isso com bastante frequência nesse seu Poema da Iluminação: “Hini, a erva que cresce no Himalaia, não se mistura com outras plantas.” – “O grande elefante não passeia pelos caminhos do coelho.” – E também, embora não de um modo claro, mas amargo: “O Iluminado vai sempre só, anda sempre só.”
O tom geral do poema é, entretanto, o daqueles que tocaram o âmago das coisas e atingiram a perfeição maior. É o tom de quem pôde afirmar: “As coisas são impermanentes e tudo é vazio.” Ou: “Quer falando, quer ficando em silêncio, quer se movendo, quer permanecendo quieto, a Essência está sempre em repouso.”
De Yôka Daishi é este verso tão cheio de lirismo, tão profundamente simples e cheio de lirismo: “Uma só lua se reflete em todas as águas.”
Ilustração: “Nu”, por Antônio Brasileiro
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