Em 1984 o artista plástico Juraci Dórea armou esculturas de couro em vários pontos do sertão baiano, a maioria delas na região de Canudos. Essas esculturas eram simples: fincavam-se algumas varas grossas no chão e se entrançava por elas duas ou três solas e pedaços de solas, amarrando-as ou pregando-as para que se mantivessem firmes sob o tempo. Os locais escolhidos eram descampados, encruzilhadas, margens de rios, feiras livres; o público, o homem do campo.
Isto, que para nós, moradores de cidades, parece insólito – esculturas de arte feitas de varas e couro curtido – obteve dos sertanejos as mais variadas interpretações. Sobre algumas dessas interpretações – ou, mais exatamente, sobre o modo como essas interpretações eram expressas – é que vamos falar.
Varas e couros estão no dia-a-dia dos sertanejos. São materiais úteis, têm funções específicas. Vê-los especados no chão pode significar mera astúcia: as pessoas gostam de astuciar – pensam eles. Com poucos dias de relento, chega ali um e destamboca uma pontinha da sola para consertar a alpercata, fazer loros; e, naturalmente, a obra de arte completa o seu ciclo. Os paus fincados permanecem erguidos por mais algum tempo.
Mas estamos agora com a escultura intacta, recém-inaugurada. Mulheres e homens, velhos e crianças, se aproximam, procuram saber uns dos outros de que se trata, para que serve. Avelina, 42 anos, descansa o pote debaixo de uma moita, segura a barra do vestido:
“Parece aí uma instúcia qui ninguém nunca viu aqui, qui eu num vou dizê qui nóis já temos visto aqui, qui nóis nunca viu, não é?”
Repare-se sua fala – uma tríplice negação, e, ainda, a dúvida final: não é? “Instúcia” é algo que se inventa; para o sertanejo, instuciar é tornar a vida interessante.
José Dias, 28 anos; foi-lhe perguntado o que achava daquilo.
“Eu acho q’isso aí é um divirtimento, não será? Se não fosse divirtimento não tava teno ninguém aqui, né?”
A mesma interrogação final: né? E a noção de “divirtimento”, daquilo que nos tira do marasmo cotidiano e nos remete para fora de nós – ou, na melhor hipótese, para dentro de nós, para uma parte nossa aflorante, desejante de aflorar. José Dias não fala exatamente de arte (arte como divertimento), mas de divertimento puro e simples. Na verdade, o próprio conceito de arte, para eles, tem uma muito grande abrangência.
De qualquer forma, a presença de pessoas, o interesse dessas pessoas é que era, segundo José Dias, a prova de divertimento.
Colhidas num gravador, essas falas foram registradas exatamente como estão. Se, para nós, a maneira como as frases estão construídas chega a pesar suficientemente, a ponto de determinar sobre o seu significado em certos momentos, para eles, os autores, importava muito mais o que queriam exprimir. Quando deparamos com uma frase como esta: “Eu acho q’isso aí é um divirtimento, não será?”, com o surpreendente futuro do verbo no final, somos levados a escarafunchar muito mais significados que os explícitos; mas isto não será objeto do nosso estudo, fazemos apenas o registro, para, aos poucos, irmos nos aproximando do nosso intento.
Um outro sertanejo, Silvestre de Souza, está diante da mesma escultura:
“Agora eu nom acho bunito pruquê nom é coisa de a pessoa se virá e dizê: é bunito. Mais é descença.”
O bonito e o decente. Há aqui um critério de valor, como se o conceito de arte (beleza), embora estando esta ausente para Silvestre de Souza, tivesse seus contornos bem delimitados (não se pode dizer que é bonito). Respeita-se o decente; o “mas” (mais), e apenas esta palavra, é que nos autoriza a inferir que o que é “descença”, embora não sendo “bunito”, merece igualmente respeito.
Certas respostas nos fazem ficar sentidos por não termos maiores explicações do entrevistado. Que teria sido bonito para Silvestre de Souza? E onde foi esse homem buscar a autoridade para afirmar a beleza ou não beleza de algo? Ele não acha bonito porque “não é coisa de a pessoa se virá e dizê: á bunito!” Sua opinião, ele a fundamenta numa pretensa opinião dos outros, todos os outros, das pessoas – e aqui deparamos com uma característica comum a vários dos depoimentos registrados: um ponto de vista nunca está solto, mas sempre embasado numa armadura lógica.
Mas se Silvestre de Souza se sente à vontade para dizer o que é bonito, com Álvaro Cardoso, rapaz de 22 anos, não se dá o mesmo:
“O povo particulá das capital, acridito que pode achá muito mais lindo. Nóis qui mora na roça, nóis assiste um couro assim, achano qui tá pariceno uma espera de ema.”
Uma espera de ema é um rancho improvisado onde o caçador se amoita para aguardar a desconfiada ave. Uma interpretação também justa, não é mesmo? Contudo, afirmar que “o povo particulá das capital pode achá muito mais lindo” não deixa de ser, bem ao modo sertanejo, uma forma de salvaguardar seu gosto delimitando o do outro (o povo particular da capital). “Muito mais lindo” é, igualmente, um jeito de não achar nada lindo aquilo. Ou seja: um não-dizer, dizendo.
Passamos agora a dois depoimentos de homens maduros, dois tipos dessa gente, sem dúvida.
Um:
“Isso aí, fazen’ mer’ q’istória… Botô aí pras, as veis, pra quem vê, perguntá: pra qui é, pra qui num é? Agora, fazen’ mer’ q’istória, eu tô falano, mais num é de minha conta.”
Outro:
“Bom, eu não tenho leitura, tá intendeno? Eu num tenho leitura ninhuma, não leio. Agora, aquilo ali eu acho qui tem uma grande tioria.”
As falas em si nos comovem. Quando Manuel Alves afirma que “aquilo ali eu acho qui tem uma grande tioria”, surpreende-nos com a palavra “tioria”(teoria): carrega-se ela subitamente de mais significados que aqueles que podemos atribuir-lhe à primeira vista. Ter teoria é ter um sentido; não é o gratuito, como o pode ser e o é com frequência a natureza, que ali está simplesmente, em si, sem outro significado que o de ser o que é. A convivência do homem do sertão com a natureza que o cerca e o cobre, permite-lhe sentir no seu íntimo tudo isso que mostramos no período acima; mas nem sempre expressá-lo. Manuel Alves nos pega de surpresa com o uso de uma única palavra – “tioria”. Ele não tem leitura, não tem leitura nenhuma, faz questão de frisar, pois se acha diante de pessoas cultas. Mas sabe o que também sabemos: aquilo não é nenhuma tolice, tem seus significados. Mais uma vez ficamos sentidos por não ter ido adiante no diálogo: Manuel Alves haveria de nos trazer novas surpresas, certamente. Dir-se-ia que tal linguagem, a dessas gentes do sertão de Canudos no ano de 1984, imita a do escritor mineiro João Guimarães Rosa, falecido duas décadas antes.
O depoimento anterior, de um vaqueiro, parece primar pela “enrolação”, o nada-dizer. Não é da sua conta; como quem diz: não entendo disso. Mas só que diz alguma coisa. Diz alguma coisa não sobre a obra, mas sobre o que a obra desperta no espectador. Ela está ali para despertar a curiosidade. – “Isso tem qui sirvi, tem qui sirvi purquê si nom sirvice… – Q’ondo nada pr’arguma pessoa qui vem, qui nunca viu, vem olhá, num é?” Isto é um diálogo de vaqueiros.
Quando se perguntou a Manuel Ferreira, outro tabaréu, o que é que ele achava daquilo, respondeu:
“Parece assim, uma coisa assim, assim mais ou meno um sinal, num é? Assim, pur exemplo, assim uma coisa as veis vem pelo ar, pelo alto. Assim, mais ou meno assim, dano alguma visão.”
Chama a imediata atenção a maneira como a resposta se vai formando na cabeça de Manuel Ferreira: mais ou menos um “sinal” (compare-se com a “tioria” de Manuel Alves). E a explicação, da mesma vaga tessitura desse sinal: uma coisa que às vezes vem pelo ar, pelo alto. “Dando alguma visão.” Isto é: dando a impressão de algo que existe e não sabemos bem o que seja.
Para nós, pessoas cultas, encanta-nos, neste depoimento, tanto a plasticidade da fala como o processo mental para se atingir o conceito. A dificuldade que Manuel Ferreira sente para explicar o seu pensamento não difere muito, neste sentido, da que sente qualquer de nós para explicar a mesma coisa. Na verdade – arrisco-me a dizer – essa dificuldade nos vem pelo menos de Parmênides e não chega a desembocar ainda em Heidegger. Trata-se de responder à pergunta: que é o ser?
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