– Quer morrer, ‘disgraça’? o motorista grita, buzina estridentemente, e acrescenta alguns palavrões que são repetidos pelos outros passageiros da hilux branca reluzente: a mulher, dois filhos e a cunhada.
Passado o susto, a cunhada conta a história de um vizinho que estragou a vida dele depois de atropelar um desses irresponsáveis que trafegam de bicicleta pela avenida João Durval Carneiro. Não fossem as cunhadas, muitos casamentos seriam desfeitos antes de chegarem às bodas de algodão (ou seriam de seda?).
Lá atrás, o ‘irresponsável’ Zé Vaqueiro se recompõe do susto, mal ouviu os xingamentos, e volta a pedalar a magrela a caminho do trabalho de vigia de uma loja no centro da cidade e não pensa mais no quase acidente que já faz parte da sua rotina.
No volante do seu possante, com sua consciência aquietada pela cunhada, o motorista vai refletindo como seria melhor o trânsito dessa cidade que ele tanto ama se não tivessem tantas bicicletas atrapalhando a mobilidade de tanta gente que é o sustentáculo da economia desse pujante município, gente que produz, que cria empregos…gente de bem.
Quantos minutos não seriam economizados? quantas grandes ideias não seriam interrompidas por sustos como aquele que ele acabara de passar? Bicicletas não são para as ruas, mas para os domingos de lazer, para percorrer a zona rural, com os filhos e os amigos do grupo de ciclismo. E lembra, com um sorriso nos lábios, da maravilhosa trilha do povoado de São Roque, de momentos inesquecíveis em meio à natureza que ele tanto ama. Ele é um cidadão sensível, pensa, convicto e satisfeito.
Lá na frente, na sinaleira da J. J. Seabra, o motoboy com capacete velho e blusão surrado emparelha a moto esperando o sinal verde. O motorista dá uma risadinha e comenta para a cunhada: olhaí, esses, se eu pudesse exterminava!
E todos caem na risada, como uma verdadeira familia feliz. E cristã.
Publicado originalmente em 12 de julho de 2020 sob o título “Feira, cidade das bicicletas”
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