Minha admiração por Drummond já vinha de longe. No início dos anos 60 ouvira alguém declamar versos do “José” e não tive nenhuma dúvida: corri à livraria e comprei a Antologia Poética da Editora do Autor.
Por certo que já lera aquele nome, mas não me encabulara; não fazia som. Isto é, não tinha o bom metro de Castro Alves (3 sílabas), Alphonsus de Guimaraens (7), Olavo Bilac (5). Mesmo Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, já meus conhecidos, tinham de certo modo algum som. João Cabral de Melo Neto, esse, com 8, era quase uma aberração. Carlos Drummond de Andrade, um hexassílabo, pecava também pela estranheza. Só bem mais tarde, ao tomar alguma consciência do meu valor como poeta, é que verifiquei ser também um hexassílabo.
Mas estávamos falando de Drummond, o poeta “consagrado” de 60 anos, e do seu admirador sem peias, de 18. Então, foi tudo um só rio e um só mar. A Antologia foi devorada de um trago.
Foi então que veio a viagem ao Rio (1966) e tive a oportunidade de conhecê-lo. Moacyr Félix, que me publicaria na Revista Civilização Brasileira, se prontificara cortesmente a levar-me qualquer dia à casa de Drummond, seu amigo. Algum temor, contudo (quem sabe o que um grande poeta pode aprontar?), impediu-me lembrar a Moacyr o seu convite. E aí, só sonhos.
Enquanto isso, aprendia a cidade. Defronte da minha pensão, na rua Paissandu, morava (acho que num quinto andar) Alceu Amoroso Lima. Os colegas de quarto animavam-me: avisa na portaria do prédio, diz que é um poeta baiano, quem sabe ele te receba. Mas não. Nada tentei.
O ápice dos “desencontros” se deu no verão de 67, quando vi Manuel Bandeira andando em Copacabana: “O senhor é Manuel Bandeira?” Creio que meu gesto tinha um quê de assaltante. O poeta parou, disse que sim com a cabeça, mas tão logo percebeu que eu era de paz (“Sou um poeta baiano…”), apoiou a mão em meu ombro e falou, falou por muito tempo, algumas vezes apontando as moças de biquini que estavam na praia. Nada do que disse me ficou na memória, só o peso de sua mão em meu ombro. Tão logo nos despedimos – ele me despediu –, atravessou a avenida e – por encanto ou desencanto – desapareceu.
O encontro com Drummond foi em 1980. Antes disso já lhe havia enviado umas coisas: livros meus e as revistas Serial e Hera, que eu criara. Sempre sucinto nas minhas dedicatórias (vez por outra uma cartinha trêmula), reafirmava todas as vezes minha admiração e dívida. Por seu lado, ele me escrevia umas cartinhas de agradecimento, alguns elogios embutidos. Então, quando Mário da Silva Brito nos disse que iríamos, sim, à casa de Plínio Doyle, eu e Ruy Espinheira Filho, e que Drummond, embora um pouco adoentado, lá iria naquele sábado para nos receber, o sono da noite anterior foi dos mais magníficos.
O elevador abrira de chofre para a sala. Mário sorriu com meu espanto (“Olha ele ali!”) e disse: “Drummond mata saudades de Lígia (Fagundes Teles), não se veem há anos.” O poeta e a romancista estavam sentados numa poltrona, com muita certeza alheios ao pequeno vozerio em torno deles. Entramos com cautela. Havia os trâmites. O anfitrião mostrava a estante onde ficariam as revistas Cordel e Serial que, atendendo ao seu pedido, eu lhe remetera há um mês ou dois. Depois, os espaços da casa. O corredor – uma galeria de fotos – foi o que mais me impressionara. Ainda hoje sei de cor a disposição da sala; das salas, melhor dizendo. “Aqui, disse-nos Mário, não é a casa do Plínio. Este apartamento, ele alugou para dispor seus livros.” De modo que ficamos a zanzar um pouco, sendo apresentados a um e outro – “São dois poetas da Bahia” – até que Drummond e Lígia dessem um tempinho para que Mário nos apresentasse.
Nesse ínterim, muito me impressionou a figura e o gesto do redator da ata neste sábado, Wilson Martins. Antes que nos fôssemos, algum tempo antes do encerramento da reunião, ele nos pediu para escutar o que escrevera sobre nossa visita. Entrávamos na história.
Fui apresentado ao poeta. Drummond, a barba de três dias, um pouco fraco, mas não pelos seus 78 anos, só por uma doencinha passageira, soergueu-se da poltrona ao tempo em que me estendia a mão. Foi este o momento mais fascinante. Deste lado, o poeta de 36 anos, a essa altura dois dedos mais alto e com o empertigamento da idade – e o homem admirado, admiradíssimo por todos os outros escritores naquela casa, a levantar-se para melhor nos “apresentarmos”.
Disse que foi um momento fascinante porque havia ali uma inversão das perspectivas: Drummond, abaixo dos meus olhos, soerguendo-se da poltrona, e talvez com algum esforço; eu, quarenta e dois anos mais novo, um gesto momentaneamente suspenso no ar: por um triz não toquei carinhosamente sua cabeça para pedir-lhe que não se desse àquele incômodo, deixasse-se ficar onde estava.
Foi esse o instante e esse o gesto. Narrei-o duas ou três vezes para amigos – e agora, ao escrevê-lo, não me sinto lá tão seguro de que não estou sendo sentimental. Teria deixado esse momento no ar, tal como a mão de Bandeira em meu ombro, não fosse o autor de Vou-me embora pra Pasárgada ter desaparecido na calçada da Avenida Atlântica e Drummond ter-se levantado, agora integralmente, para reforçar o aperto da mão e dizer-me que me enviara uma carta dias antes, eu a encontraria por certo quando regressasse à Bahia. O que mais nos falamos? Não sei. Parece que os poetas admiráveis têm o dom de nos fazer esquecer tudo aquilo que não seja a sua pura poesia.
Publicado originalmente em 15 de março de 2021
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