– Pomponet! Pomponet!
O grito animado contrastava com o meio-dia quase sempre escaldante da Feira de Santana. Noutras vezes havia mormaço, mas o desconforto se mantinha. Aquela voz familiar reatava lembranças infantis, dos tempos já distantes da Escola Coriolano Carvalho. Era de um antigo colega de colégio, lá de meados dos anos 1980. Gritava da varanda de casa, ali no Sobradinho, numa rua que serpenteia, pejada de automóveis estacionados.
Ouvi a saudação alegre durante anos seguidos, até o começo da pandemia. Depois do grito, o antigo colega abancava-se, ia almoçar numa mesa plástica na varanda de casa. Do lado, a garrafa de água gelada; no rosto, o sorriso satisfeito, o prato cheio diante de si. Disseram que perdeu o juízo, a razão eu desconheço. O que sei é do entusiasmo quando me via, mesmo como personagem secundário de um passado – quem sabe – feliz que ele viveu.
Com o arrefecimento da pandemia voltei a percorrer a mesma rua, mais silenciosa, sob o mesmo sol abrasador, implacável, ao meio-dia. Às vezes até há chuva, o céu encoberto, mas a recordação que prevalece na memória é a dos dias escaldantes. Notei, logo nos primeiros dias, que a saudação alegre – Pomponet! Pomponet! – não se repetia.
A inquietação foi crescendo, aquela sensação difusa de perda, mesmo de alguém distante, que apenas resgatava, por alguns instantes, remotas recordações infantis. Diversos conhecidos morreram ao longo da pandemia. Recusava-me a vê-lo morto também, imaginava-o na casa de algum parente, nalguma viagem prolongada, algo assim. Mas, num meio-dia, de chofre, o irmão – iracundo militante cristão – lançou a sentença, sem rodeios:
– …Quis desafiar Deus, quis ser maior do que Deus, olha no que deu. Morreu!
Dardejou, encarando-me, como que desejando comunicar o episódio, a morte do irmão durante a pandemia. Teria sido vítima da Covid-19? Ficou a dúvida no ar. Ele próprio também é antigo colega da mesma escola, estudou na mesma sala que eu. Mas conserva uma distância hostil, vejo-o refém de uma tempestade interior: o fervor cristão contrastando com a disposição para o álcool, o copo à mão. Respeitei o distanciamento, cultivando minhas dúvidas.
O fato é que a perda – o grito alegre que me espreitava antes do almoço – soma-se a inúmeras outras, decorrentes da Covid-19, ou não. Alimenta a sensação de vazio, de incontornável ruptura com o passado pré-pandemia. Não foram só perdas humanas, de vidas: lugares interessantes fecharam, foram à falência, muitas pessoas conservam sequelas na alma do prolongado período de confinamento.
Em alguma medida, o dimensionamento dessas perdas – humanas e materiais – apenas começou, com a flexibilização mais incisiva das medidas de isolamento social. Imagino que será longo – e doloroso – o processo de readaptação, de percepção de que o presente já não se assemelha tanto com o imediato passado pré-pandemia. É mais um desafio que se coloca para quem superou a Covid-19.
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