– O sujeito está aí, na cela administrativa. Ontem [domingo] de manhã, ‘saiu na mão’ [brigou] com um preso no pátio do [pavilhão] três. Surrou o outro, que tem consideração no meio da malandragem. Correram atrás dele e ele foi encurralado na própria cela. Uns trinta foram entrando, todo mundo foi ‘currando’ ele…
Era manhã de segunda-feira no Conjunto Penal de Feira de Santana. Meados dos anos 1990. Quem explicou o episódio foi o agente penitenciário com quem conversávamos sempre, fazendo a cobertura policial pelo extinto jornal Feira Hoje. O brigão – e potencial violentado – aguardava medidas administrativas no ‘seguro’, pois o convívio no pavilhão três tornara-se impossível.
Na cela administrativa – ficava no próprio pavilhão administrativo – ele negou o episódio, os olhos muito abertos, o ar de espanto. Admitiu a briga, seu sucesso na peleja contra o rival. No mais, reconhecia a reação da turba, inconformada com o desfecho da briga. Daí a nova confusão, a intervenção dos agentes penitenciários, a remoção para o ‘seguro’ no pavilhão administrativo.
– Não lhe violentaram?
– Não, não. Não houve nada disso, não – negou abrindo ainda mais os olhos, a expressão de espanto se tornou dramática, quase dolorosa.
Forneceu mais algumas informações: ‘rodara’ enquadrado no Artigo 12 do Código Penal Brasileiro – tráfico de drogas – e era de Salvador. Como sempre, atribuía a prisão a uma armação, não passava de um usuário de drogas mais entusiasmado com a cocaína. Na ocasião, o repórter fotográfico Luiz Tito registrou o episódio, a foto do preso assustado atrás das grades saiu na página policial do jornal Feira Hoje.
Meses depois rebentou uma rebelião no mesmo Conjunto Penal. Na via empoeirada – a antiga rodovia Feira-Bahia não era pavimentada – a imprensa aguardava novidades, os familiares dos presos disputavam as sombras raras com sofreguidão, o calor era causticante no começo da primavera. Novamente dividi a pauta com Luiz Tito, sofríamos sob o sol implacável.
– Vamos beber um refrigerante para espantar o calor! – Sugeri, num instante de trégua na rebelião.
O bar – antigo, daqueles com o balcão bem comprido, a prateleira sortida – ficava numa rua próxima, quase despovoada. O silêncio e o canto dos galos emprestavam ar rural ao ambiente. Ali perto, no balcão em forma de “L”, duas mulheres. Papo vai, papo vem, indagaram se éramos repórteres. Diante da confirmação, uma delas anunciou, enfática:
– Meu marido é o xerife do pavilhão três!
Aí revelou que era de Salvador, rememorou o episódio da prisão, a liderança do marido no pavilhão e, por fim, sacou da bolsa um foto, exibiu-a orgulhosa para o par de repórteres. À primeira vista, feição comum, dessas que emolduram documentos. Satisfeita com a receptividade, fez questão de pagar os dois refrigerantes consumidos pelos jornalistas: sacou uma nota de cinquenta – era dinheiro na época – o dono do bar teve dificuldade para providenciar o troco. Lá fora, Luiz Tito relembrou o episódio de meses antes, a briga, a correria e o suposto ataque sexual, os olhos de espanto do detento:
– É o mesmo que foi atacado, daquela matéria que nós fizemos!
Duvidei, Luiz Tito garantiu que era, tinha certeza. Capitulei, não lembrava da fisionomia do preso, nem sou bom fisionomista, reconheço esta limitação, ainda mais examinando foto. Lá atrás, no botequim, a mulher ainda pavoneava-se, gabando a valentia do xerife do pavilhão três, desfrutando a satisfação com o marido brabo, respeitado no meio carcerário…
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