– E aí, rapaz? Lembra de mim?
Hesitou um instante: aquela barba crespa, esbranquiçada, as rugas disseminadas em torno dos olhos, a pele crestada pelo sol, tudo embaralhava as lembranças. O fio de memória que se insinuava não dissipou as incertezas. Aguardou.
– É Alex. Lembra que eu e Claudinho te defendíamos quando Júnior tentava te bater?
Aquilo era mentira, mas as dúvidas se dissiparam. A criança zombeteira rompeu as brumas da memória, avançou algumas décadas e se materializou ali, na mesa do restaurante, naquelas feições corroídas pelas asperezas da vida. À sua frente o copo de cerveja exigindo atenção e ele desperdiçando o sábado num indesejado encontro com o passado. Percebeu, de soslaio, as roupas puídas, encardidas, o olhar arisco. Esperou:
– Soube que Júnior morreu?
Negou com a cabeça. Explicou que morava fora, ficou muitos anos afastado daquelas cercanias, só aparecia por ali quando visitava o pai. O outro retomou a ofensiva:
– Era esquentado, você sabe como era, arranjou confusão, acabaram matando – arrematou, com um tom de pesar na voz.
Claudinho, o outro protagonista daquela conversa fúnebre, também morreu: sentado na cadeira plástica de uma birosca imunda. Lá, vagabundos apostavam dinheiro miúdo nas cartas de um baralho sebento. Ajuste de contas: cinco ou seis tiros. Dois motoqueiros – nunca identificados – chegaram e fizeram o serviço.
– Eu sabia… – Entornou um gole largo, estoico, farejando os desdobramentos daquela conversa.
A mãe daquele desgraçado que estava ali, diante dele, também morrera. E a própria mulher, em quem fizera três filhos. Contava tudo com calculado pesar. Era Sábado de Finados, mas o dia era radioso. Aquela sobreposição de lutos diluiu um pouco a luz do início da tarde.
–… tu nem sabe. Um dos meninos quer ver a mãe, no cemitério. Estou aqui sem dinheiro, sem nada, não sei o que dizer. Preciso de 14 reais para ir até lá.
Mostrou as mãos calosas, encardidas, enodoadas de sujeira. As unhas nojentas acumulavam linhas pretas de inimagináveis imundícies. Inúmeras queimaduras deformavam os dedos, um dos indicadores era mais curto, chamuscado, desfigurado. “Trabalho como peão”, alegou, abespinhado com o exame minucioso.
O outro espichou o olhar, viu o garçom surgir com o porco assado, a carne desprendendo um cheiro convidativo. Que fazer? A escuridão que aqueles lutos invocavam não se dissipava. Examinou o rosto zombeteiro, que ensaiava um sorriso sarcástico. O garçom servia o feijão tropeiro, as batatas apimentadas, a salada vinagrete.
– Olha, toma aqui – sacou uma nota de 20, lamentando que não tinha trocado. O outro, surpreso, sustentava o sorriso de dentes escurecidos, carcomidos. Será que fumava pedra de crack? Recolheu a cédula, estupefato com a generosidade imprevista. E foi ficando defronte à mesa, examinando a carne, a cerveja gelada, amarelada, no copo americano. Só faltava pedir um copo, escalar-se para aquele banquete inesperado, mastigar desfiando mais ainda o leque de finados.
Naquele silêncio interminável os mortos se insinuavam em meio à névoa da memória. Lembranças infantis emergiam, misturando-se àquela tarde de Finados enlutada. O espectro permanecia com a cédula na mão, disposto a despejar mais mortos naquela conversa pontuada por silêncios. O constrangimento crescia. Que fazer? Melhor investir nele, aprofundá-lo, mesmo com a comida disposta ali à frente, esfriando.
– Vou andando. Não te atrapalho mais – encerrou o desgraçado, percebendo que investir naquela escorcha era demais. Teria fome? Moveu o corpo andrajoso, contornou as mesas plásticas amarelas e saiu tropeçado nas sandálias de dedo. Os olhos vívidos denunciavam os planos para aquela cédula que levava na mão cerrada.
Atrás de si deixou a névoa de luto que o sol incandescente a custo foi diluindo na tarde de Finados.
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