por Rafael Rodrigues
O tema das cotas em universidades ou concursos públicos está sempre envolto em polêmicas. De um lado, os favoráveis, que veem nessas medidas uma maneira de, timidamente, amortizar a dívida histórica que o Estado brasileiro tem com os negros, por causa da escravidão; de outro, os contrários, que encaram as cotas como uma forma de reforçar o racismo e de desequilibrar a concorrência por cadeiras universitárias ou cargos públicos.
Muitos dos que se colocam contra as cotas também usam o argumento da “meritocracia”, ou seja, da conquista pelo mérito. Segundo esse pensamento, quem precisa da política de cotas para ingressar numa universidade não tem mérito, pois fez uso de uma política afirmativa para alcançar seu objetivo.
O problema é que, como bem escreveu o professor Dagoberto Freitas, a meritocracia “só pode ser estabelecida quando todos possuem condições iguais”. Ou seja: o mérito existe quando a disputa acontece em condições de igualdade.
Usemos, aqui, o exemplo do campeonato de Fórmula 1, citado pelo professor Teomar Soledade. Os carros podem até ser parecidos no visual, mas há diferenças gritantes nos motores utilizados por cada equipe. Há, também, diferenças na aerodinâmica, no acerto dos carros e mesmo nos testes feitos antes de cada temporada ser iniciada.
As grandes equipes, com mais capital, têm os melhores equipamentos e podem pagar os melhores engenheiros. Já as equipes menores, com um orçamento limitado, às vezes não conseguem sequer ter o próprio túnel de vento, uma ferramenta indispensável para testar os carros. Neste ano, por exemplo, a equipe Racing Point, que vinha utilizando o túnel de vento da Toyota Motorsport (que não compete na Fórmula 1), usou o túnel de vento da poderosa Mercedes. Detalhe: com 612 pontos, a Mercedes já é a campeã do campeonato de construtores deste ano. A Racing Point, com 54 pontos, ocupa a sétima colocação.
Para haver igualdade de condições na Fórmula 1, todos os carros teriam de ser iguais. Todas as equipes teriam que ter o mesmo motor, os mesmos ajustes e profissionais de igual qualidade. Dessa maneira, saberíamos quem realmente é o melhor piloto. Hoje, o inglês Lewis Hamilton é considerado o melhor piloto de Fórmula 1, mas ele dirige uma Mercedes. Como Hamilton se sairia pilotando uma Racing Point?
No caso das cotas em universidades, é justo que um estudante de escola pública da periferia, negro e pobre, concorra com um aluno de classe média ou alta que sempre estudou em escolas particulares? Óbvio que não. É por isso que as cotas existem: para dar ao estudante pobre a oportunidade de entrar no ensino superior e, dentro da universidade, ter a oportunidade de expandir suas aptidões e seu intelecto.
Se observarmos com cuidado a situação, as cotas ainda estão longe de ser uma medida correta, afinal, o aluno de escola pública muitas vezes vem com um déficit educacional, pois a estrutura escolar que teve foi muito aquém da que teve um aluno de classe média ou alta.
Além disso, muitos alunos de classe alta vão para a universidade em seus próprios carros, enquanto os alunos pobres vão de ônibus, muitas vezes tendo que escolher entre fazer um lanche ou almoçar, ou mesmo tendo que ficar sem comer, porque só têm o dinheiro da passagem de ônibus.
Alunos de classe média ou alta podem comprar seus próprios livros. Alunos de classes baixas precisam usar a biblioteca, e às vezes os livros de que precisam para estudar não estão disponíveis para empréstimo. Alunos de classe média ou alta podem se inscrever em eventos pagos dos seus cursos e assim conseguir certificados. Alunos de classes baixas muitas vezes não têm dinheiro para participar desses eventos.
A propósito: anos atrás, a Finlândia percebeu que o perfil dos alunos de ensino superior era basicamente o mesmo, ou seja, jovens de famílias privilegiadas. Para corrigir essa distorção, o governo finlandês adotou uma medida que pode ser considerada como radical: estatizou praticamente todas as escolas e colégios particulares, dando a quase todas as crianças, sejam elas ricas ou de classes mais baixas, o mesmo ponto de partida. Recentemente, o Labour Party (Partido Trabalhista) do Reino Unido decidiu que irá adotar como proposta a solução finlandesa.
Como uma alternativa às cotas, o professor Teomar sugere um sistema de bônus: “São acrescidos 5, 10 ou 15% na pontuação final a título de compensação pela situação temporária adversa do concorrente”. O problema é que o bônus pode acabar não sendo suficiente para garantir a entrada de quem poderia entrar através das cotas. E, assim como há fraudadores das cotas, pode haver fraudadores de bônus – a meu ver, seria muito mais fácil fraudar bônus do que fraudar cotas.
Por fim, em sua réplica ao professor Dagoberto Freitas, o professor Teomar cita o economista norte-americano Thomas Sowell, e faz questão de frisar que Sowell é negro.
Sabendo quem é o professor Teomar Soledade e conhecendo o seu trabalho, tenho absoluta certeza de que ele tem a melhor das intenções ao abrir o debate sobre cotas e dar sugestões para diminuir as desigualdades. Mas não posso deixar de pontuar, até mesmo como alerta, que Sowell é frequentemente citado pela direita dos EUA e também pela direita brasileira, o que é um mau sinal. Como antídoto, sugiro a leitura de economistas como Paul Krugman, Joseph Stiglitz, Ha-Joon Chang e, no Brasil, Laura Carvalho, Nelson Barbosa, entre outros, que encaram a questão da desigualdade social como prioridade no debate econômico.
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