por André Pomponet*
Saiu. Era noite. Nunca andara em noite como aquela, não conhecia a sensação. Mas foi.
Dobrou à direita, enveredou por vias tortuosas. Logo adiante se deparou com um tumulto. Curiosos examinavam a cena do crime. No chão, incontáveis cápsulas de diversos calibres de armamento sofisticado. Sangue respingado manchava a parede áspera e uma poça coagulara na poeira sobre o calçamento.
– Esse é o destino dos ímpios, daqueles que cultivam a sabedoria dos homens – vociferava um pardo de camisa social devidamente abotoada, calça vincada e impecáveis sapatos lustrosos. Empunhava o Velho Testamento.
– Mataram um comunista – murmuravam aqueles que examinavam, mórbidos, a cena do crime.
O corpo já fora recolhido: não convinha que ficasse exposto ali. Mas esqueceram a prova do crime: a mochila coalhada de literatura subversiva. “Filosofia ou sociologia”, cochichavam, alarmados, os retardatários que teimavam na esquina trágica. O vento quente espalhava as páginas daquelas publicações sacrílegas: pés piedosos trataram de destruir os impressos satânicos.
Quando as vozes se ergueram entoando uma oração para exaltar os que apertaram o gatilho, seguiu adiante. Continuou avançando à direita, envolto na escuridão indevassável daquela noite. As luzes, fugidias, sequer insinuavam que as trevas compactas pudessem se dissipar.
Foi quando quase esbarrou no grupo que se encaminhava para o centro da cidade.
Feições coléricas, ódio nos olhos vidrados, lábios repuxados por uma raiva indisfarçável. Eram vários. Empunhavam soqueiras bojudas, camuflavam correntes de bicicleta nos bolsos largos das bermudas, escondiam afiados punhais nas cinturas, mas os porretes lustrosos iam entre os dedos crispados. Nem se preocupavam em disfarçá-los.
Iam caçar travestis no centro da cidade.
Comentavam que a quantidade decaíra. Mas aqueles iam perscrutar todos os becos e vielas, varar avenidas, vasculhar as barracas dos camelôs nos calçadões. Se fossem felizes, no dia seguinte um cadáver desfigurado amanheceria repousando nalguma montanha de lixo. Quando não achavam travestis, trucidavam prostitutas. Mulher sozinha – e com as pernas de fora – depois costumava exibir vergões quando se deparava com uma dessas patrulhas. Várias tiveram o rosto desfigurado.
Ficou assustado, mas disfarçou o temor. Nas regiões mais desenvolvidas do País, os perseguidos eram seus conterrâneos, a gente do Norte. Amarrou o passo, porque nessa noite era temerário reagir. Enveredou por uma rua lateral, discreta, pouco frequentada.
– Vai querer o quê? O fumo ou o pó? – Não viu o molecote que emergiu de uma viela escura, estreita, que exalava um repugnante odor de esgoto.
Não queria nada e o molecote puxou um velho revólver calibre 38 da cintura: por ali ele não podia passar. Aquilo tinha dono, só entrava freguês. Gaguejou umas desculpas e foi se afastando de costas, porque o cano enferrujado podia cuspir um projétil fatal.
– … Deu foi sorte. O patrão é da milícia, tá circulando aí. Se fosse ele…
Deu azar: cinco minutos depois encontrou a milícia numa rua deserta, de matagais intrincados. Circulavam num carro roubado. Os fuzis despontavam nas janelas. Viajavam despreocupados, os braços largos pendendo das janelas. Nem pestanejaram, foram logo descendo, puxando pistolas automáticas, mandando ficar quieto.
– Documento, documento – gritaram.
– Que caralho tu veio fazer aqui? Indagaram, depois do exame minucioso dos papeis. O dinheiro que descansava na sua carteira foi parar no bolso do mais forte, que mesmo à noite exibia óculos escuros. Na revista, retiraram o aparelho celular do seu bolso.
– Tu não é da imprensa, não? – Tirou os óculos e os olhos cintilaram de ódio, mesmo na noite sem estrelas.
Que fazer? Insinuou que era conservador. Pacato. Apolítico. Quase um alienado.
– Dessa vez vamo te liberar. Mas essa área é nossa, tá sabendo? Some !!!
Foi tropeçando na escuridão e só sossegou quando uma profusão de luzes se insinuou às margens de uma avenida larga. Nem percebeu que passou pelo trecho de mata aonde desovavam os corpos dos jovens negros. Às vezes, dois ou três numa mesma madrugada. Mãos amarradas, sinais de sevícias. Diziam, sempre, que eram marginais.
A profusão de luzes conduzia ao gigantesco painel que estampava a imagem do Farol dos Povos. O Líder sábio de veneração impositiva. O Patriota. O Redentor. E ele estava lá, reluzente, com o olhar vazio, os lábios insignificantes e os dentes tortos…
…Acordou com um grito que reverberou pelas paredes do quarto: fora um pesadelo!
Levantou. Bebeu o resto da água gelada na geladeira. Esvaziou a garrafa. Decidiu beber na torneira mesmo, encostou a boca, engolia com goles ruidosos. Respirou, arquejando, o suor escorrendo em gotas espessas pelo rosto.
Foi um pesadelo. Ou não?
Olhou a cidade plana que se estendia a partir da janela do terceiro andar. Lá fora, a madrugada densa. E sentiu, desanimado, que a luz para dissipar aquela escuridão poderia demorar muito…
*André Pomponet é jornalista
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