Esperança é um conceito complexo. Está relacionada a uma convicção, a uma intuição de que o mundo, apesar de sua aparente estabilidade, está sempre no aguardo de mudanças e renovações. Está relacionada à certeza da própria existência de um futuro, certeza empírica e baseada na continuidade do passado. Só é possível com a fé. Porém a esperança exige ruptura, não continuidade, o que parece ser uma contradição na medida em que a projeção futura sempre de baseia na experiência passada. O interessante é que as grandes rupturas raramente são antevistas, sendo apenas reconhecidas depois de ocorrerem.
Isso decorre da capacidade humana da ação, ou seja, de falar palavras e praticar atos. A ação acontece no mundo humano, no estar-entre-outros, sendo a liberdade sua condição. É por meio dela que homens e mulheres lançam no mundo novas coisas, que são continuadas por outras pessoas e vão muito além do ato original, apesar de derivarem dele sua legitimidade e força transformadora. Por essa razão, a principal característica da ação é a sua imprevisibilidade: algo novo está por vir, algo foi gerado, adicionado à história do mundo humano, mas quem iniciou essa força criativa não tem controle sobre seu processo. A continuidade geradora (de novos sentidos, de novas ações) de um ato é potencialmente infinita, e nunca se sabe quando (e se) o ato está completo.
A ação sempre existiu enquanto houve ser humano, mas foi interpretada de diversas maneiras. Na concepção romana de mundo, por exemplo, a ação era identificada com a primeira de suas partes, o generare, sua gestação. A fundação, o início, era a fonte de legitimidade a ser sempre invocada. Sua principal tradução moderna são os mitos de fundação nacionais, difundidos para dar sentido e coesão a uma comunidade política. Mas a própria modernidade resgata o sentido de continuidade da ação, e a pós-modernidade o aprofunda. A autoridade derivada do ato de fundação se perde, e vivemos na ressignificação da tradição. A pós modernidade faz, no termo de Lyotard, “apostas” com o objetivo de esgarçar o campo dos discursos autorizados em cada instituição: jogos de linguagem, que buscam levar às últimas consequências os atos de fundação. A função denotativa da linguagem, tradicionalmente usada na universidade, pode dar também lugar a sua utilização poética; a de comando, nas forças armadas, pode dar lugar à de contestação, e assim por diante. No fundo o que se faz é a renovação e superação do ato fundador, ainda que preservando-o em sua estrutura básica. Dessa maneira, a ação é continuada e renovada, sendo agora essa mudança no processo mais importante que a fundação (ou mesmo a refundação, desejo típico do iluminismo).
Entretanto, o caráter irreversível da ação nos apresenta um enorme problema: uma vez que algo é fundado, é dito ou é feito, não há a possibilidade de apagamento. O único remédio para a irreversibilidade da ação é a capacidade de perdoar. Sem ela, a capacidade agir ficaria limitada a um único ato, cujas consequências (imprevisíveis) nos atormentariam para o resto da história. Isso demonstra mais uma vez que a ação se dá no mundo humano compartilhado, na pluralidade ou no que alguns pensadores chamariam de esfera pública, onde há outros para os quais se prestam conta e que podem estar dispostos, ou não, a perdoar. (Na era de vigilância informacional que vivemos, o perdão pode parecer uma utopia ou pior, uma heresia, já que criamos diversos pecados capitais, e uma publicação resgatada de 10 anos atrás pode significar o “cancelamento” de alguém…).
A própria imprevisibilidade da ação, que por um lado pode representar a ressignificação e atualização do ato fundacional, por outro pode levar à eterna indefinição e, por conseguinte, à paralisia de novos atos. Daí surge a necessidade das promessas, que podem ser feitas no presente e devem ser cumpridas no futuro, introduzindo algum tipo de estabilidade nos assuntos humanos. De fato, nossas construções políticas mais estáveis são baseadas em promessas e a quebra delas pode acarretar graves consequências. O princípio pacta sunt servanda (os pactos devem ser cumpridos) é basilar na nossa concepção de direito. Entretanto, nem tudo pode ser prometido e cristalizado, pois assim a própria política seria irrelevante e a ação tenderia a desaparecer. A pós-modernidade, mais uma vez, nos afirma isso e rejeita o discurso positivista do iluminismo, que buscava a palavra máxima e última em tudo que diz razão à política, ao direito e à justiça. Essa “desagregação das narrativas” da era pós-moderna é muito mais um apelo pela continuidade da esfera política e o reconhecimento de que há questões que devem, em nome da liberdade e da possibilidade de mudança, permanecerem abertas à deliberação.
À potencial infinitude da ação se opõe a condição natural da mortalidade. A ciência moderna nos ensina que o próprio universo está fadado ao fim, quando toda a energia disponível for transformada e não puder mais ser utilizada, e o aumento da entropia (ou seja, a desordem) levar à paralisia fervente do maquinário cósmico. A vida, entretanto, foge a essa ordem e inverte a seta da entropia, que agora flui do simples ao complexo. A natalidade é a condição humana essencial à ação, condição que permite a potencial infinitude da própria ação.
No Ocidente os conceitos de perdão, promessa e renovação provavelmente nunca foram tão bem articulados como na tradição cristã. Jesus de Nazaré é precisamente a criança prometida, que nasce com a missão de renovar os assuntos humanos através do perdão dos pecados. A fé nessa renovação aparece intimamente associada à esperança do Reino. É uma mensagem simples, mas profunda: “Nasceu uma criança entre nós”. Ou, como quando Riobaldo se defronta com o um nascimento em um pobre casebre no mais ermo sertão: “Um menino nasceu – o mundo tornou a começar!”
Ensaio baseado em ARENDT, Hannah. A Condição Humana. São Paulo: Editora Forense, 2016.
Daniel Cunha Rego é estudante e membro do Programa de Educação Tutorial em Relações Internacionais da Universidade de Brasília (PET-REL).
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