Os assíduos leitores de longa data mais atentos deste Blog já repararam que esta coluna está há bastante tempo sem grandes novidades. Há algumas razões para isso, mas uma delas é que, nos últimos anos, estive me dedicando à conclusão do mestrado em Ciência Política, que agora pomposamente estampa minha descrição no fim do post. No entanto, sempre estive aqui pelo Blog: revisando textos, trocando banners, publicando matérias “frias”, corrigindo erros e outras inúmeras atividades administrativas e de manutenção do site.
O mestrado, por sua vez, já foi concluído. Dissertação defendida e enviada para a publicação. Ainda está “no prelo”, mas logo deve ser disponibilizada na íntegra na biblioteca virtual da Universidade Federal de Santa Catarina. Este post, no entanto, não é uma prestação de contas. Irei transcrever um trecho dos agradecimentos da dissertação. Foi uma das partes que mais gostei de escrever e que fluiu quase que naturalmente de uma vez só, ao contrário do restante do trabalho, lento e laborioso. Resolvi, então, aproveitar o que seria apenas uma formalidade acadêmica para refletir sobre o que significa fazer ciência e, mais importante, sobre o que significa ser humano no contexto da pesquisa.
Por mais que a aridez dos textos científicos possa testemunhar em contrário, os trabalhos acadêmicos não são escritos no vácuo. Eles derivam de condições históricas, pessoais, laborais e relacionais específicas. É já senso comum que o pesquisador, ainda mais nas ciências que estudam diretamente a ação humana, não consegue mais convencer a audiência de sua neutralidade: seu viés já se inicia quando elege, dentre uma multitude de possibilidades, o tema que irá trabalhar, quando seleciona sua metodologia, quando encontra aportes teóricos que podem subsidiá-lo na tarefa a que se propôs.
A ética da pesquisa científica, no entanto, impõe a ele (esse pesquisador abstrato e quase sempre masculinizado, pela história, pela estrutura social e pela própria linguagem) um afastamento no mínimo linguístico do conteúdo de sua pesquisa. Rapidamente o “eu”, que escrevo, se transmuta em “nós”, que afirmamos, que notamos, que argumentamos, que convencemos, que reconstruímos, que concluímos. Se o “nós” tem a vantagem de neutralizar os marcadores de distinção social do ser-que-pesquisa, tem a desvantagem de apagar o ego que realiza uma ação. Sobretudo em um trabalho monográfico, assinado, avaliado formalmente e conducente a um título acadêmico, o “nós” cumpre a função de dessituar o que é absolutamente situado.
Assim, o único refúgio tradicional do ego são as páginas que vêm antes do corpo da pesquisa “em si”: a epígrafe, os agradecimentos, alguma ou outra nota introdutória. Aqui, descobre-se que de fato há um ser humano que realizou a pesquisa que porventura encontra-se inserido numa teia de relações sociais, possui familiares, amigos, expressa emoções, frustações, reflete sobre a dificuldade inerente à pesquisa científica, esteve em algum local do planeta. Pistas interessantes, mas frequentemente escassas e fragmentárias, carregando linguagens que não se endereçam, como a pesquisa, a potencialmente todos os leitores da língua em que é escrita o trabalho.
Esta dissertação, é evidente, não fugirá a essa regra. Afinal, a atividade que realizo aqui é de tradição quase milenar, a defesa de teses teológicas, filosóficas ou científicas para obter um grau que indique a existência de alguma capacidade intelectual autônoma. Presume-se ao menos que, obtendo um título pretensiosamente intitulado Mestre, eu tenha demonstrado alguma capacidade de articular ideias minimamente coerentes e de desenvolver uma pesquisa autônoma de qualidade aceitável. Por isso, desde o século X, os Europeus – e muitos argumentam que duzentos anos antes, os árabes – realizam um ritual em linhas gerais semelhantes ao que performo agora.
Se algo o estudo da Ciência Política e da Sociologia me ensinou foi a importância da performance, dos papéis sociais e, igualmente, das redes discursivas, dos textos que os sustentam e permitem sua continuidade no tempo e no espaço, a reprodução, no jargão científico. Assim, por mais que se possa tentar de alguma maneira escapar a esse padrão, ele é inexorável pela própria natureza impositiva da atividade que realizo – que evidência maior do que esta própria reflexão, grafada na norma padrão da língua portuguesa?
Como aqui ainda posso falar do que sinto, devo confessar que é um misto de admiração, resignação e esperança.
Admiro o próprio fato de haver a espécie humana, um animal que trata discursivamente de seus assuntos. Admiro a possibilidade de continuidade, a renovação dos assuntos humanos pelo ciclo de nascimento e mortalidade. Essa renovação, contudo, não é completa por causa da intersubjetividade, que gera a tradição e que permite a continuidade intertemporal dos nobres esforços humanos, ou das opressões e relações de dominação. A capacidade do ser humano em comunicar-se por meio da linguagem, que comporta proferimentos potencialmente infinitos, é algo que sempre me causa admiração. Na imensidão de um universo regido por leis naturais precisas e constantes bem ajustadas, há um ser que cria discurso, também imenso, potencialmente ainda mais infinito que o universo. Quando descobrirmos – ah, esse quando, a certeza do homem da modernidade! – todo o universo; quando mapearmos todas as estrelas, todos os planetas, quando descrevermos cada átomo, cada quark, quando os inserirmos num modelo explicativo da totalidade do Big Bang até a morte termodinâmica do Universo: ainda haverá sobre o que falar?
Se o discurso permite a continuidade da espécie humana e a criação de coisas novas, por que, então, sinto resignação diante da tarefa de adicionar mais palavras ao mundo? As palavras, que servem para inventar coisas novas, também permitem a continuidade de coisas muito antigas e que talvez já não devessem mais ter lugar. Se a comunicação permite a colaboração e a inovação através de milênios, ela também ancora situações de dominação e injustiça profundas no respeitável termo “tradição”. Por que tantas palavras perpetuam a negação do reconhecimento de indivíduos e grupos tidos como menos semelhantes aos seus pares humanos? Se ao menos desde Saussure sabemos que os signos não se confundem com a materialidade de seu significado, sua existência real é inquestionável por seus efeitos profundos no mundo. A resignação parece ser, então, a única resposta possível.
Porém a esperança, esta sim, surge da própria capacidade de renovação biológica da natureza – a filosofia diria que a natalidade é o milagre que salva o mundo de sua ruína natural, a ciência diria que a vida reverte a tendência termodinâmica à entropia. Contudo ela seria inútil se a natureza não tivesse capacidade de renovar-se a si própria, pela evolução, e o ser humano de renovar o seu próprio mundo, pela ação. A ação, esta sim, é a criação de novos discursos. Eles sempre estarão, evidentemente, vinculados aos recursos disponíveis ao ator – em primeiro lugar, o próprio sistema linguístico compartilhado por seus pares. Porém é apenas a esperança (uma capacidade curiosamente semelhante à fé, o que talvez ajude a explicar a profundidade do sentimento religioso humano) que dá sentido a qualquer discurso ou ação. É necessário esperar, acreditar, ter fé de que algo possa ser, ainda que só um pouco, diferente. É preciso ao menos suspeitar que, ao dizer algo, está-se correndo o risco de incorrer numa inovação, em uma sequência de palavras que não foram ainda postas lado a lado e que podem produzir efeitos imprevisíveis. O infinito contável do sistema linguístico, que permite expressar as mais terríveis ideias e as mais belas poesias, é o primeiro fator da esperança – ou mesmo da fé.
Volto à minha pergunta, agora reformulada: quando se disser tudo que se pode dizer, quando a linguagem se esgotar completamente, quando todos os trabalhos literários, científicos e filosóficos que poderiam ser escritos forem escritos, quando todos os discursos de encorajamento forem ditos, quando todas as canções tristes forem cantadas, ainda haverá o que dizer, o que escrever ou o que cantar?