
O isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavírus vem levantando debates a respeito do direito reprodutivo das mulheres, principalmente em países onde a interrupção da gravidez é amplamente legalizada. Nos EUA, líderes de vários estados — Texas, Ohio, Louisiana — têm pressionado para fechar clínicas de aborto ou reduzir severamente o acesso à elas, argumentando que o aborto não é um procedimento essencial e que, portanto, deve ser adiado. Já na Espanha, o aborto não está entre os serviços adiados pelo Governo haja vista a compreensão de que o tempo é um elemento essencial para este tipo de procedimento.
Recentemente, na Inglaterra, o Secretário de Estado da Saúde e da Assistência Social divulgou que medidas emergenciais foram tomadas relativas à regulamentação do aborto — entre elas, o direito a tomar medicação abortiva em casa, sem ter que se deslocar primeiro a uma clínica, ou seja, realizar consulta por telefone ou chamada de vídeo — 5 horas depois disseram ter sido um erro a publicação: não haverá mudanças na regulamentação.
No Brasil, apesar de restrito, o aborto é legal em três casos. A interrupção voluntária da gravidez em casos de estupro pode ser feita até 22 semanas a partir da concepção ou até que o feto tenha 500g. Nos casos de anencefalia do feto e de risco à vida da gestante, não há prazo, de acordo com normas do Ministério da Saúde.
Em relação aos países citados, tampouco no Brasil a situação é animadora em relação ao tema. Há aqui 85 hospitais cadastrados como referência para o serviço de aborto legal. Entre eles, o Hospital Pérola Byington (em São Paulo) é o maior, tendo realizado 25% dos procedimentos legais no País. Entretanto, segundo reportagem da revista AzMina, o Hospital informou que o serviço não funcionará durante a crise do novo coronavírus. Outros hospitais citados na reportagem ou não souberam responder se o serviço continua ou estão também paralisados.
Sem previsão de quando esta crise deve acabar, as mulheres que precisam realizar a interrupção ficam abandonadas. Além disso, a própria situação de auto isolamento limita oportunidades para que elas durante o surto de COVID-19 busquem o serviço, potencialmente levando a uma série de gravidezes indesejadas, forçadas a continuar ou forçadas a recorrer a métodos ilegais ou inseguros para terminá-las.
O Brasil é um dos países mais violentos com mulheres, especialmente negras e pobres. Segundo dados de 2018, o País contabilizou 66 mil casos de violência sexual (180 estupros por dia). A partir disso, estima-se que um dos efeitos da quarentena será o aumento de agressões doméstica visto que a vítima permanecerá mais tempo com o agressor do que em situações normais durante este período. A título de exemplo, no Rio de Janeiro, houve aumento de 50% de registros de violência doméstica.
O estupro é uma das formas mais comum de subjugar pela violência. A interrupção voluntária da gravidez em caso de violência sexual é legal, mas as mulheres mais suscetíveis a necessidade de recorrer a este procedimento, neste momento, estão encontrando barreiras a seu acesso quando clínicas especializadas paralisam o atendimento. Consequentemente, é natural que ocorra uma procura maior destas gestantes por serviços ilegais — ilegalidade, contudo, que impõe riscos à saúde e a vida da mulher, principalmente mulheres negras para as quais é especialmente mais difícil percorrer longas distâncias a procura de uma clínica ou arcar com os custos de acessar a um hospital privado.
É essencial que esse serviço se mantenha funcionando mesmo durante a crise da Covid-19 ou que se ofereça a este público opções alternativas. Via de regra, o procedimento abortivo legal não requer Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs), mas complicações causadas em clínicas clandestinas facilmente pode requerer. Dados de 2016 mostram que, entre 2013 e 2015, o SUS realizou 100 vezes mais curetagens do que o número correspondente a abortos previstos na lei.
Como parte de um debate global, pesquisas mostram que as mulheres preferem, quando podem escolher, o aborto médico (o uso de misoprostol e mifepristone para interromper a gravidez) do que o aborto cirúrgico — sendo o primeiro mais barato. Há evidências que mostram que os medicamentos podem ser fornecidos com segurança usando telemedicina, e que não há maiores riscos de segurança ao tomar os medicamentos em casa. Assim, não expõe-se essas pessoas ao risco de contaminação pelo coronavírus ao se dirigir a um hospital.
Talvez seja o momento de, nesta situação pandêmica, reacender o debate público no Brasil em torno da legalização ampla do aborto além de formas alternativas de realizá-lo, principalmente para os casos em que a lei já concede o direito. O Estado brasileiro deixará as mulheres vítimas de estupro entregues à própria sorte? É cruel e desumano se nenhuma atitude por parte dos governos for tomada para garantir o já limitado direito reprodutivo das mulheres brasileiras.
- Por que as pessoas cometem crimes? - 06/07/2022
- Qual o custo dos estacionamentos gratuitos? - 27/06/2022
- Justiça climática na prática - 20/06/2022