
“Hermes Trismegisto escreveu com uma ponta de diamante em uma lâmina de esmeralda”. Só a genialidade do maior tropicalista do Brasil (que, aliás, o foi antes de saber e talvez por esse exato motivo tenha sido o maior de todos eles!) permitiria unir tão suavemente a filosofia egípcia do século XIV a.C. com o Brasil do século XX. O Pai da Alquimia inspira um alquimista musical a criar “Tábua de Esmeralda”, uma obra-prima tão completa como a Obra Solar. Mas não é de Jorge Ben que quero falar. É da tábua de esmeralda hermética.
Para nossa percepção contemporânea, inspirada pelo esclarecimento, pelas sucessivas revoluções científicas e tecnológicas, voltar a um texto místico de antes da era comum parece absurdo. Levá-lo a sério, mais ainda. Mas todo texto deve ser lido como um diálogo entre autor e leitor. Ambos possuem tarefas dificílimas: o primeiro, elabora o argumento de acordo com as ideias de sua própria época e escreve segundo o que ele próprio é. Ao segundo cabe não apenas desvendar o significado, como também re-criar. Não precisa, nem deve, ser fiel ao autor. Precisa violentá-lo, drená-lo à última gota o de seu sangue. Ou, para manter a metáfora modernista-tropicalista, devorá-lo por completo. Até os ossos.
Deleuze entendia que o ato de interpretar é equivalente ao de matar o autor. Ranciére contesta o pressuposto da tradição ocidental defendido desde Platão: “quem vê não sabe ver”. Defende atos de leitura criadores, que subvertam a “distribuição do sensível”, ou, em bom português, que tirem “cada coisa de seu lugar”. A velha máxima marxiana também se aplica aqui: o velho deve morrer para que o novo possa existir (para, em seguida, envelhecer. Não há fim da história).
A característica de uma obra clássica não é apenas perdurar. É ser estapeada a cada geração. Só permanece relevante aquilo que muda, mesmo que as palavras continuem as mesmas. Aquilo que se permite ser subvertido, re-lido e re-escrito com as mesmas palavras.
O cânon é sempre problemático. Além dos problemas evidentes de o que temos e o que perdemos, ele é construído por meio de casualidades mais ou menos interessante. A relevância do platonismo no Ocidente (e, quem sabe, de quase toda a cultura grega) deve muito à cristianização da escolástica. Foi uma violência. Foi um modo de leitura. Foi uma fertilização do solo do clássico. (Não quero entrar hoje no mérito das “rasuras do cânon” e de seus significados sociais/políticos).
Dito tudo isso, volto à Trismegisto. Benjor o violentou ao transpô-lo para o LP. E isso permitiu que Trismegisto estivesse hoje entre nós, recitando as frases de sua celeste tábua.
Tudo para dizer meu objetivo nesse breve texto: levar Hermes para conversar com Descartes. Talvez um pouco sem originalidade, mas o imperativo do momento é escrever. Para mim. Para você, é ler e me esmurrar. Com razão.
Primeiro, pelas concordâncias: “O que está em baixo é como o que está em cima e o que está em cima é como o que está em baixo”. Demócrito, Newton e Bohr assentem. O universo é feito de átomos e espaços vazios. A astrofísica é a ciência que igualou os fenômenos estrelares aos fenômenos terrenos e mundanos. São regidos pelas mesmas leis. As estrelas são formadas por elementos que estão também em nós. Hermes entendeu, como Protágoras e, depois, Galileu, que “O homem é a medida de todas as coisas”. Este último, trouxe o universo à cognição através de um instrumento feito por suas próprias mãos, o telescópio, e só por humanizar o universal fê-lo compreensível. O ser humano descobriu, a partir daí, que ele próprio é o ponto postulado por Arquimedes através do qual se poderia mover o mundo.
“É verdade, certo e muito verdadeiro”. A dúvida é a certeza cartesiana maior. Apenas ego sou muito verdadeiro. Homo universalis.
“Desse modo obterás a glória do mundo”. Conhecimento é poder, diz a máxima. Certamente ele permite a manipulação das leis da natureza. Arendt, porém, diria que ao cientista qua cientista nada é mais estranho que a noção de poder. A ciência se proclama desinteressada e, de fato, qua ciência, o é. O ser-humano cientista pode agir qua cientista, qua político, qua cidadão… Para a mecânica quântica, Hiroshima e Nagasaki são tão irrelevantes quanto o meu texto. Para Heisenberg, Pauli e Schrödinger talvez não o sejam. Mas são Heisenberg, Pauli e Schrödinger. Não são a teoria quântica.
Como disse, a fecundidade é a característica do clássico. Ele pede para ser esbofeteado. Eu o fiz, desajeitado. Mas afinal, cada golpe é um degrau na escada da memória. Obrigado, também, Benjor!
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