
Estou tentando ler um pouco nesses tempos. Estou agora no meio de “A invenção dos direitos humanos”, onde Lynn Hunt narra a origem do conceito moderno de direitos universais desde o início do esclarecimento. Um tema destacado pela autora é como esses direitos são fundados na percepção que se tem do outro como um igual a si mesmo, a empatia. Diferente do que pode parecer, empatizar com o não-eu envolve noções históricas de intimidade, sentimentos e mesmo do reconhecimento que o outro é igual a mim enquanto membro do gênero humano.
Mesmo após as revoluções que consagraram os direitos do homem (uso aqui em seu sentido literal, sexo masculino), notáveis exceções a esses direitos inalienáveis e “universais” persistiram. Todas as mulheres, pra início de conversa, cujos direitos políticos não foram conquistados em nenhum lugar antes do século XX. Essa universalidade iluminista já começa sem metade da população humana.
Difícil não notar essa omissão. Já no século XVIII, Mary Wollstonecraft percebe a contradição que ululava das declarações de direitos ditas universais. Isso para não falar da escravidão, que aparentemente em nada feria o espírito da Declaração de Independência e da Bill of Rights estadunidenses.
Como é possível que leiamos os mesmos documentos tão diferente de como liam os homens da época? Como pode ser que maneira nada universal com que certos dispositivos eram aplicados ferem nosso sentido moral, e, ainda assim, era a representação da vanguarda progressista?
O fato é que as disputas pelo esgarçamento desses direitos sempre foram evidentes desde que eles foram declarados pela primeira vez (Hunt inclusive fala da importância do ato de declarar, que evoca a soberania de quem declara, mas é assunto pra outra hora). Logo após a Revolução, na França, os protestantes usaram os universalismo das leis eleitorais (todo homem) para reivindicar direitos políticos. Depois foi a vez dos judeus, dos libertos, dos carrascos e atores (que, um por tirar a vida e outro por fingir ser quem não é, são desde a antiguidade considerados desonrados). E apropriar-se do “todo” foi tarefa de diversas minorias desde então, sempre tentando romper um pouquinho as barreiras da tradição e se inserir nessa universalidade.
Estava pensando em falar sobre um “novo esclarecimento” que, após as grandes conquistas do século XX (que, sem surpresa, reivindicaram os princípios modernizantes e de racionalidade do esclarecimento para alargar sua universalidade) e depois do ceticismo particularista pós-moderno (que rejeita a narrativa de aprimoramento do mundo pela razão) pudesse ser realmente universal e esgarçar a modernidade e os direitos através da capacidade comunicativa humana. Talvez até postulasse que, se não já nos encontramos lá, estamos chegando bem perto.
Mas aí começou a tocar o magistral samba-enrendo da mangueira, de 2019, “História para ninar gente grande”. E a única frase que veio a minha cabeça então foi: até quando?
Senti-me como um Rousseau fracassado, como um Jefferson desiludido, ao lembrar que no século do meu neo-iluminismo ainda existem assassinatos políticos. Ainda existem aquele que, se formalmente tem direitos, não o exercem, por sequer serem ouvidos. Milhões que “não estão no retrato”, para quem modernidade é um termo vazio.
Séculos de silenciamentos e de “universalismos” com ressalvas não se esvaem tão rapidamente, por maior que seja a força de vontade. Pergunto: até quando? Quero acreditar, e acho que continuo acreditando, na capacidade humana de elevar seus padrões morais, de refletir sobre a história e, a partir do entendimento e da tão humana capacidade de falar e de agir, criar coisas inteiramente novas.
Mas o blogueiro que vos fala é ansioso. Não quer esperar mais 2 séculos para a utopia. Até quando? Não sei. Mas chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês. Na verdade já passou, há muitos séculos. Estamos apenas, com percalços, tentando correr atrás do prejuízo.
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