Em artigo publicado n’O Globo no dia 26 de Abril, Miriam Leitão relata que a equipe econômica de Guedes ameaçou renunciar caso os investimentos públicos fossem retirados do Teto de Gastos em emenda constitucional que tornaria possível o Plano Pró-Brasil. O Plano visa induzir o investimento privado através do investimento público e, assim, retomar o crescimento. Mas afinal, a quem serve a Política Econômica (PE)? À corrente teórica seguida pelo Ministério da Economia ou ao bem-estar da sociedade?
Em economias maduras ao redor do mundo, a velocidade de propagação do vírus fez teorias e conceitos serem revistos – pelo menos para enfrentar a pandemia. Governos liberais deram lugar a um protagonismo estatal, deixando a defesa do Estado Mínimo de lado. A responsabilidade fiscal tornou-se menos prioritária em relação ao combate à crise sanitária. O Governo dos EUA sancionaram um pacote de US$ 2 trilhões (um equivalente a 10% do PIB) para amparar pessoas e empresas. O Banco da Inglaterra recorreu ao financiamento monetário, que consiste na impressão de dinheiro para a compra de títulos públicos, gerando um crédito na conta do Governo. No Brasil, entretanto, há enorme resistência em se adaptar ao novo cenário que a Covid-19 impõe: políticas que fujam das tradicionais, por exemplo, mais gastos públicos para frear o avanço do vírus e evitar o colapso do sistema de saúde.
Karl Popper propôs a falseabilidade como critério de demarcação entre ciência e não ciência. Para ele, a experiência empírica apenas pode contradizer, e nunca verificar, um enunciado universal. A economia, como ciência social, mutável e evolutiva conforme a sociedade se modifica no espaço e no tempo, se distancia desse critério que se enquadra perfeitamente à física. Apesar de algum consenso de que a natureza da ciência econômica não admite uma a visão popperiana, na prática, não é isso que ocorre – basta prestar atenção ao debate público entres os profissionais da área. Constantemente, experiências passadas fundamentam discursos que defendem ou não uma política econômica sem levar em consideração particularidades da situação presente. Contudo, as teorias econômicas não valem independente da realidade.
O estágio kuhniano de ciência normal [relativo ao pensamento do filósofo e físico Thomas Kuhn], no qual os cientistas tentam forçar a natureza a encaixar-se dentro dos limites preestabelecidos e relativamente inflexíveis fornecidos pelo paradigma, talvez seja uma boa metáfora para o que ocorre no Brasil neste momento: tenta-se encaixar a resposta à pandemia ao escopo da Política Econômica defendida durante a campanha eleitoral de 2018. Em outras palavras, independente do estado da natureza kuhniano, quaisquer necessidades da sociedade devem ser atendida pela agenda econômica (metáfora para paradigma), no caso atual, de privatizações, reformas e austeridade fiscal.
A discussão parece mais religiosa do que científica. A enorme resistência a flexibilizar o Teto de Gastos, por exemplo, é por vezes justificada por uma inaptidão natural e imutável do Estado brasileiro em controlar excessos e impedir a corrupção. O mesmo serve para justificar privatizações de estatais sob argumento de que o setor privado é mais eficiente do que o público, ainda que não seja um bom negócio fazê-las neste momento de preços em baixa. As reformas como saída à crise tampouco parecem viáveis, visto que, no curto prazo, elas têm caráter pró-cíclico (tudo que deve ser evitado agora).
É verdade que desde a crise de 2008 o mundo tem passado da noção neoclássica de “mão invisível do mercado” para uma que leva em consideração o viés humano, social e irracional. Ainda assim, os formuladores de política econômica no Brasil pouco avançam no entendimento de que a economia não é linear e binária: livre comércio funciona ou não; regulação é importante ou não. Em tempos de crise, os que insistem neste pensamento, perdem-se na complexidade inerente aos sistemas que descrevem crises, mais ilustrada por funções exponenciais do que curvas lineares.
A pandemia requer pensamento fora da caixa, abandono de dogmas a respeito da dívida, das políticas monetárias e fiscais. Segundo o ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, Pascal Lamy, a resiliência é heterodoxa – disse ao se referir a necessidade da construção de sistemas mais à prova de choques.
“As pandemias não são lineares – são exponenciais. Quando as coisas são derrubadas fora dos trilhos, eles nem sempre voltam a um estado estável. Estamos falando de sistemas complexos.”
Alguns dogmas econômicos que permeiam o debate público brasileiro estão sendo postos em cheque pelas demandas urgentes trazidas pela pandemia da Covid-19. Entre eles, está a ideia de que o Estado brasileiro não tem dinheiro para elevar gastos públicos ou de que impressão monetária se traduz em inflação, mesmo em cenário deflacionário. Economistas que seguem ‘cartilha’ de correntes econômicas não percebem que nesta ciência, que é dinâmica e evolutiva, não podem existir ‘verdades’ pétreas quando as condições de temperatura e pressão não são constantes. O ceteris paribus [todo o mais constante] é apenas abstração teórica para facilitar o entendimento de uma realidade complexa.
A ameaça de saída do Ministério da Economia por parte da equipe econômica reflete a dificuldade de pensar fora da caixa quando modelos da economia tradicional não funcionam mais. Neste momento, ater-se a dogmas tem um custo muito alto: a morte de milhares de pessoas que provavelmente não seriam vítimas fatais do vírus caso o governo federal entendesse que Política Econômica que tem finalidade em si mesma não serve à sociedade.
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