Tantos meses sem sair de casa! Sem pisar a areia das praias onde eu fazia caminhadas de Jardim dos Namorados a Amaralina, três, quatro vezes por semana. Sem andar na Ipueira, numa caminhada mensal de ”suar em bicas’’, sob o vento e o sol, enquanto respirava o cheiro de maracujás do mato, assa-peixe, caiçaras e o doce amargo das braquiárias, do capim elefante triturado para o gado, ou do embriagante perfume das floradas de cajueiros, mangueiras, ou da sutileza dos aromas de flamboyants e ipês… Ou, enquanto concentrado, acompanhava o voo de uma ave, ou procurava o ninho de galinhas d’Angola, gansas ou peruas sob as copas das árvores ou escondidos touceiras de malvas ou moitas de vassourinhas ou capim.
Todo este tempo sem usar minha casa no Caminho Ilhéus, sem abrir minha rede, sem usufruir “do clima sagrado” de minha Feira de Santana, minha terra querida, de exílios e acolhidas, sem poder andar por suas largas ruas e avenidas, sem entrar na UEFS, sem reencontrar os amigos e amigas para o abraço fraterno e caloroso, no riso alegre e sincero; sem olhar nos olhos dos estudantes e funcionários, sem lhes escutar a cordialidade, sem trocas afetivas e cognitivas; sem frequentar a feirinha da Cidade Nova, sem comprar frutas e legumes na barraca de Vanzinho e sua família, sem comprar duas long neck de cerveja “véu de noiva” em “seu” Antônio, na Praça do Lelê, ou em dona Flávia, no Mercadinho 3M, na rua Jairzinho, frente à Praça João Havelange… sem pesquisar novas cores e raças de pavões, perus e galinhas d’Angola, gansos e marrecos com Louro e Maneco, vendedores de aves…
Aqui, nesta bela capital aberta ao mar, em sua parte mais luminosa desta cidade colonial, confinado num apartamento do quarto andar de um edifício numa rua da Pituba, um bairro eminentemente de classe média e como tal reacionário e racista, de vizinhos que fingem acreditar na meritocracia, que veem o Outro, qualquer que seja o seu nome ou aparência como ameaça e não como possível encontro, uma gente que desenvolveu toda uma mentalidade punitivista, enfim, apesar de estar com quem amo, com quem escolhi para amar, o entorno não me parece nem simpático, nem confiável, para mim que sou mestiço e carrego as marcas étnicas demasiado evidentes, e que não finjo não poder com eles manter laços de pertença e solidariedade. Nem mesmo ante a Covid-19, pois enquanto prego o isolamento, eles insistem em “voltar à normalidade”, depois de terem repetido o mantra da “gripezinha”, enquanto eu defendia o SUS, eles pregavam, aos berros, o fim das políticas públicas de ação afirmativa, clamavam contra os governos do PT! Mas tudo tem preço e escolhi estar aqui e agora… e outras compensações são possíveis e efetivas.
São meses e dias sem… sem… sem isso, sem… aquilo… e sem… muito mais. E talvez mais meses ainda, como não prever que nesse ritmo não se chega nunca em Marrakech?!! Onde chegaremos se ficarmos no lugar, isolados, confinados, respeitando a quarentena, sitiados, cercados, sob vigilância do vírus que está à espreita, esperando um vacilo, um descuido, uma despreocupação maior para contaminar, sufocar, asfixiar? não sabemos… é uma privação com provação e sem garantia de recompensa da saúde assegurada ao fim desta jornada ao desconhecido.
Meses em privações de sociabilidade, com restrições de demonstrações de afetividade. Sem abraçar meus velhos pais, sem beijar meus filhos e sem tomar na colo os netos, sem o abraço fraterno nos irmãos, na irmã, sobrinhos e amigos, sem visitar e sem ser visitado… sem o aconchego diário, sem o conforto do carinho, sem a carícia amorosa e essencial, tão perto e tão afastados, isolados…
Privações. Como negar que a pandemia nos força a privações sucessivas e de várias ordens? Prazeres suprimidos, gozos adiados para um tempo incerto, não é mais “para quando o carnaval chegar”, pois pode nunca mais chegar, mas fica para depois, para quando e se a pandemia passar, que pode ter o mesmo número de sílabas, com incertezas ainda maiores nessa promessa de um futuro imaginado e um presente inacabado.
São todas fortes privações que implicam em provações não menos duras. Exigem do ser humano uma força e uma coragem moral que por vezes duvidamos possuir, mas que (re) encontramos quando nos (re)centramos, respiramos fundo, no hara, como nos ensina a sabedoria oriental, e sentimos a força vital dentro de nós acordar e nos aquecer, nos ativar.
Provações, pois passamos a mensurar o preço que precisamos pagar por cada desejo realizado ou adiado, suprimido ou excluído. “Boca a salivar desejos”, a fábrica de ilusões de nossa mente que nos prega peças inventando necessidades inacessíveis, nos fazendo acreditar em sofrimentos maiores.
O nosso eu idealizado nos faz cobranças, por vezes desmedidas e cruéis, e até certo ponto desnecessárias. Trapaceiro e astucioso, nosso eu idealizado por vezes “finge tão perfeitamente que as vezes chega a pensar que é dor a dor que deveras sente” ,como nos lembra Fernando Pessoa.
Padecemos da falta de abraços, sofremos com os “beijos malogrados e os sorrisos suspensos”; tudo parece faltar, a vida parece que de tanta assepsia, ficou seca, árida, como as mãos demasiadamente lavadas com álcool setenta por cento, ou em gel.
Mas é sobre esta secura que deverão nascer as condições de novas reconfigurações identitárias: como estamos sendo neste momento de pandemia? Quais transformações estão alterando, esculpindo nossa autoimagem?
Confinados, milhões a sós, milhões de outros e outras juntos e separados, vivendo a superatividade ; outros e outras incapazes de compreender quem são e o que de fato necessitam, sem apreender o sentido da própria privação e sua consequente provação.
“O mundo se despedaça”, lembro que o título deste romance de Chinua Achebe, presenteado por Elaine Matos, veio-me à mente quando tive conhecimento do absurdo da situação que iríamos viver sob o impacto da pandemia. Sem podermos assistir presencialmente, fisicamente, os nossos velhos, sem dar vazão a nossa fome de demonstração de afetos, sem poder estar presente aos funerais dos entes queridos. A pandemia nos confrontou à miséria da solidão e ao peso esmagador da impotência.
Por querer a segurança de quem amamos, nos privamos de sua companhia. De repente, tornamo-nos homens-bombas, mulheres-bombas, portando vírus letais da Covid 19. Capazes de transmitir a morte no inocente afago, no abraço, no toque sobre o corrimão, na maçaneta da porta, na tecla do elevador, numa folha de papel, numa caneta emprestada…kamikazes, podemos ser terroristas a espalhar vírus e a destruir vidas. Ou nos privamos ou somos provações para quem amamos.
Estamos confrontados aos nossos medos mais primários que, inevitavelmente, poderão vir ao nosso encontro, de tão mentalizados podendo se plasmar em nossa frente. Se não respirarmos profundamente, se não nos recentrarmos.
Provação também que nos leva a repensar valores morais, éticos e estéticos. De repente descobrimos que o que valia antes, hoje não faz mais sentido, está fora de lugar ou não mais importa. Isto vale para as roupas, os sapatos, cintos, carteiras, bolsas, os colares e brincos, tudo de repente parece ter se tornado o que de fato sempre foram: acessórios.
Provações que nos levam a repensar e ressignificar afetos positivos até antes da pandemia imprescindíveis, sem os quais nossa sede não seria mitigada, e eis que agora, distantes, nos vemos vivendo a cada dia, sem a companhia e… não morremos por essa falta, já somos capazes de crer que somos como estamos sendo, tão somente… E isso é outro choque e não pequeno aprendizado!
Velhas e agradáveis certezas que hoje deslizam entre a má fé e a ignorância, o vírus nos arrancou. Não há salvação fora da vacina nesta civilização! Pois é a própria configuração da vida social que nos faz encontrar ou atrair o vírus.
Por isso, adeus às reuniões que tanto nos encantavam e que serviam para inflar nossos egos: nada mais de concorridos funerais onde nos sentíamos falsamente recompensados por nos vermos desviados de nossa real dor; muito menos os casamentos festivos onde o número de convidados também indicava uma posição na hierarquia social.
As religiões institucionalizadas? Ilusões perdidas, sombras no nevoeiro! Não nos salvam e são potenciais transmissoras dos vírus com seus cultos coletivos. Ir aos templos é travessia de salvação incerta e contágio presumido.
Temos de aprender a nos relacionar com as divindades sem intermediações, deveremos ser nossos próprios sacerdotes, oráculos dos deuses e deusas que podem nos habitar, os escolhermos, se quisermos lhes dar vida. Aprender a despertar estas divindades talvez seja uma outra urgente prioridade para a refundação do viver.
Escravos da acumulação de bens e produtos, sobrecarregados do peso de bens materiais, vemo-nos obrigados a ser humildes, quase desnudos, totalmente despojados, pois o vírus aprecia sobremaneira os materiais, as superfícies, não importa se ouro ou papelão, diamante, ou plástico. Indiferente ao valor material, à riqueza ou ostentação, ele, o vírus, pousa e se incrusta.
Enfim, a civilização que temos é ela mesma tanto provocadora como hospedeira preferencial do vírus. A prova inconteste é que populações mais longínquas e que se mantém distantes de contatos com indivíduos com trânsito nos grandes centros urbanos, se mantém isentas e com saúde preservada.
Como sistema de produção desenfreada, o capitalismo não reconhece limites e fronteiras, nem respeita espaços sagrados: nem mares, nem florestas, nem geleiras, nem ares… tudo deve ser objeto de cobiça e lucro, de exploração contínua até a exaustão… O desequilíbrio ecológico é outra prova inconteste desta ação predatória sobre a natureza provocado por esta civilização que é ela própria regida e configurada pelo capitalismo em sua fase mais perversa.
Talvez seja o mais duro aprendizado que tantas privações e provações tenham nos oferecido: aprender a ser, tão somente. Focar o essencial. Ser plenamente, independente de como se esteja, com quem se esteja. Talvez seja esta a resiliência que necessita ser elaborada a cada momento nestes tempos perigosos de pandemia e pandemônio, outro nome do Caos. Acreditar numa nova reorganização, é a maior prova de sabedoria.
Uma nova refundação da vida pressupõe um novo pacto social onde prevaleça o Cuidado como regra fundamental a nortear as relações de cada indivíduo com seu semelhante e também com o não humano, seja animal, vegetal ou simbólico.
Refundação de pacto que implica em religação com a Terra, um novo enraizamento onde cada ser humano se descubra em sua natureza original, se conscientizando da sua animalidade básica e sem a qual é apenas fria racionalidade, ou modo de ser produção. Reivindicar o esprit de finesse e assim, entre razão e emoção, num equilíbrio sempre a ser construído e buscado, ter como meta o modo de ser afetividade.
E, por saber que este terror que nos ameaça pode ser fruto da desmedida da soberba de perversos governantes, enquanto esperamos a vacina como único salvo conduto para de novo transitarmos em nossos próprios territórios, enquanto esperamos, tentemos, mesmo no modo virtual, estabelecer redes de insubmissão que, ao apresentarem propostas honestas e bem argumentadas, sejam capazes de criar condições para um outro mundo onde a sustentabilidade seja a chave do desenvolvimento e a solidariedade seja o objetivo do progresso, em escala planetária, verdadeira “utopia concreta”, este sonho diurno que se sonha de olhos abertos, não importa onde se esteja.