– Os comunistas sumiram. Estão desnorteados com a porrada que levaram…
Ouvi isso logo depois da vitória de Jair Bolsonaro, o “mito”, em 2018. Quem celebrava era um idoso na mesa de um bar muito frequentado ali na Kalilândia. Lançava olhares em volta, numa provocação àqueles que ele rotulava, genericamente, de “comunistas”. Nos meses seguintes mantinha a provocação, julgando o Brasil livre da “praga vermelha”. Revi-o há pouco, já vacinado contra a Covid-19 com a Coronavac.
– Não era a vacina chinesa do Dória? – Provoquei, numa referência ao governador de São Paulo, João Dória, responsável pela importação do medicamento.
Ele fez um gesto de desdém; queria evitar o papo, desagradável. Lembrei que o conheci há cerca de dez anos, quando o Brasil era a sexta economia do mundo. Desde lá, deslizou para a décima segunda posição e, em 2021, deve cair mais ainda, terminando o ano em 14º lugar. Antes que tomasse fôlego, acrescentei que, nesta queda, já há a contribuição do “mito” Jair Bolsonaro.
– Olha, isso não se resolve da noite para o dia. Leva tempo. A corrupção do petê foi grande, quebraram o País. Vocês deviam ser patriotas, se unir, contribuir com o Brasil. São jovens ainda, têm muito o que contribuir.
Lembrei que o povo está aí às voltas com a pandemia. O desemprego é grande, não há política decente de transferência de renda ou de manutenção de emprego. Ele desdenhou com outro gesto largo, então apelei para mais números: a renda per capita – essa que chega para os indivíduos –, caiu e o Brasil alcançou o 85º lugar no mundo em 2020. Seis anos antes, em 2014, ocupava a 76ª posição. Países como Chile, Argentina, Uruguai e até a República Dominicana estão em situação melhor.
– Tá tudo fechado, meu filho! Como é que essa economia vai crescer? Os governadores da esquerda – aí citou Rui Costa (PT), João Dória (PSDB) e o governador gaúcho Eduardo Leite (PSDB) – fecharam tudo! Estão aproveitando essa pandemia que os chineses inventaram para encurralar Bolsonaro! Só não vê quem não quer!
Lastimei a presença dos militares no governo: sem projeto, sem preparo, interessados só na versão verde-oliva das “boquinhas”, da picanha, do leite condensado. Na própria ditadura, defendiam a industrialização. Agora, atiram contra. E apelei para mais números: em 2000, 75% das exportações brasileiras eram de manufaturados e semifaturados. Bens industriais, com maior valor agregado. Caiu para 43% ano passado. O país exporta cada vez mais minério e grãos e encolhe no cenário econômico mundial.
– Essa coisa de estatística aí é séria. Bolsonaro tem que dar um jeito, tem muito comunista em IBGE, em universidade, em escola, doutrinando. Os comunistas estão atentos, não perdem oportunidade…
Acrescentei em tom irônico que a imprensa também é terrível, divulga malfeitos, elogia pouco o governo do “mito”. Deve ser coalhada de comunistas. Inclusive grandes grupos de comunicação, que ostentam fachada empresarial para avançar mais rápido para o “comunismo”. Ele entendeu a pilhéria e olhou de soslaio. Aproveitou para elogiar as chuvas – intensas, fartas – e despediu-se, recomendando juízo, moderação nas “inclinações comunistas”.
– Para mim não chega mais nada ou chega pouco, porque já estou velho. Mas para meus filhos e netos…
Como última provocação, aproveitei para lembrar que, com a pandemia, a expectativa de vida do brasileiro caiu, de 77 para 75 anos. Logo, ele é um privilegiado, já se vacinou e não vai morrer de Covid-19. Despediu-se com um aceno irritado e atravessou a rua, com pernadas resolutas…
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Ótimo texto, sintetiza bem como funciona o fundamentalismo ideológico da extrema direita. Parabéns, ao autor, André Pamponet.