Poesia, diz-se, é algo pessoal.
Não sei se concordo com isso. Mesmo figuradamente. Custa aceitar que uma coisa tão antiga, tão arraigada no ser humano, tão espalhada por todas as civilizações seja assim. Em todo caso, como não se tem lá tantas certezas no mundo, adotemos a suposição. Então, que o falar de poesia – o que vamos fazer neste momento – seja também algo pessoal. A gente diz que gosta de tal poema, prefere tal poeta – e é só isso mesmo. Sejamos pessoais. Não há trocadilho: Fernando Pessoa, ele mesmo – ou mesmo não ele mesmo – nem gostava disso.
Pessoa. Descoberta dos dezesseis, dezessete anos.
Claro que o rapazola de então nada sabia da já reconhecida magnitude do poeta: àquela altura – os anos 1960 –, o que me chegava às mãos não era a literatura “sobre” Fernando Pessoa, mas o próprio poeta. Era o impacto de sua poesia que me fascinava, literalmente fascinava. “Descoberta” é como se diz usualmente para nomear eventos desta estirpe. Para quem já vinha escrevendo poesia há alguns anos, e se via no futuro como um também poeta, ela – essa descoberta – era uma dádiva.
Fernando Pessoa na Bahia, eis o meu tema. Claro, não o em carne e osso. Infelizmente. Aliás, enquanto viveu, pouquíssima gente mesmo sabia de sua existência no Brasil. Aqueles modernistas de São Paulo eram uns ignorantes em termos de poesia mais profunda; gostavam era da futilidade, que associavam à nação inteira. Pessoa, imagino, nos teria feito ganhar algumas décadas de qualidade. Em todo caso, a Bahia de Pessoa a que me refiro é aquela que conheci, a dos anos 60. A rigor, a de 1964, ano em que entrei na Universidade. No ano seguinte a Aguilar publicava sua “Obra Poética”, papel bíblia, volume único, o que uso até hoje. Falava-se, portanto, de Pessoa.
Dos Pessoa.
Álvaro de Campos para os mais exaltados. A rigor, aquelas longas odes me pareciam longas demais, com seus (para mim, excessivamente excessivos) Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò – yyy… / Eh-eh-eh-eh-eh! Eh eh-eh-eh-eh! eh! / Shooner ahô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô- / T-t—t—t—-t—–t …, embora me alegrando o interior adolescente o tesouro dos dois versos:
Fifteen men on the Dead Man’s Chest.
Yo-ho-ho and a botle of rum!
“Ah, que ânsia humana de ser rio ou cais!” – parece-nos também estar a ouvi-lo.
Mas Álvaro de Campos era também o autor do “Poema em linha reta”: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo; do “Lisbon revisited”, de 1923: Não, não quero nada. / Já disse que não quero nada. // Não me venham com conclusões! / A única conclusão é morrer. // Não me tragam estéticas! / Não me falem em moral! //Tirem-me daqui a metafísica! – com os ecos do seu mestre Caeiro; e sobretudo daquela obra-prima que é “Tabacaria”. Leitor – modesto – de Heidegger, sempre vi este filósofo em nosso poeta. Ou vice-versa. Não só em “Tabacaria”, mas por toda parte; no poema dramático intitulado “Primeiro Fausto”, em especial.
Para os formais – voltemos aos heterônimos –, Ricardo Reis; que eu achava, com o perdão da palavra, insosso. Frio. Meus vinte anos (e, por que não dizer, ainda meus trinta e tantos, ou mais) não podiam aceitá-lo convenientemente. Alguns poemas de Reis, escritos no dia 12 de junho de 1914, em especial o excelente Coroai-me de rosas, chegaram a me parecer (e escrevi um ensainho sobre isto) atribuição equívoca de Pessoa a Reis: o poema, eu achava, era de Caeiro.
Reis, assim como se diz que ocorre à leitura de Goethe, foi uma descoberta da maturidade. Hoje, sua solenidade e ausência de pressa já me parece uma sabedoria.
Então – Caeiro.
Lia e relia Caeiro. Pessoa o fizera nascer e o extinguira praticamente de um só golpe, com poucos anos de “vida” – vinte e seis, creio. Caeiro foi o meu mestre, disse Pessoa. Álvaro de Campos o adorava: “E eu perguntei de repente ao meu mestre Caeiro: ‘está contente consigo?’. E ele respondeu: ‘Não: estou contente.’ Era como a voz da terra, que é tudo e ninguém.”
Vale a pena (a alma não é pequena) falar um pouco mais de Caeiro.
Em 1931 (sigo a edição da Aguilar, p. 246) Pessoa – isto é, Álvaro de Campos – escreveu umas “Notas para a recordação do meu mestre Caeiro”. Umas quatro páginas muito salutares. Campos faz perguntas, Caeiro o impressiona com suas respostas.
Nessa altura senti carnalmente que estava discutindo, não com outro homem, mas com outro universo. Fiz uma última tentativa, um desvio que me obriguei a sentir legítimo.
“Olhe, Caeiro… Considere os números… Onde é que acabam os números? Tomemos qualquer número – o 34, por exemplo. Para além dele temos 35, 36, 37, 38, e assim sem poder parar. Não há número grande que não haja um número maior…”
“Mas isso são só números”, protestou o meu mestre Caeiro.
E depois acrescentou, olhando-me com uma formidável infância: “O que é o 34 na Realidade?”
“Pessoas” de Pessoa, diz-se. O rebanho é os meus pensamentos / E os meus pensamentos são todos sensações. Em outro lugar, ainda o guardador de rebanhos: Há metafísica bastante em não pensar em nada. Em outro mais: Porque o único sentido oculto das coisas / É elas não terem sentido oculto nenhum. Em outro:
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Então vem Fernando Pessoa, o tal “ele mesmo”. O autor daquela trova que todo o mundo conhece, mesmo que só conheça a trova: O poeta é um fingindor – etc. E mais: mais que nos heterônimos, é neste Pessoa que o místico melhor se mostra. Em “Iniciação”, o verso final: Neófito, não há morte; em “No túmulo de Christian Rosencreutz”: Quando despertos deste sono, a vida, / Soubermos o que somos, e o que foi / Essa queda até Corpo… Em outra parte: Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / é o quem eu me suponho, / Corre um rio sem fim. O dividido Pessoa do Não meu, não meu é quanto escrevo. E que penso agora adir, por minha conta, um verso de 1930 ou 32:
Tudo é vento e disfarçar.
Sabemos que Pessoa não ficou só aí, nesses quatro. Não chegou, é verdade, a trezentos, trezentos e cinquenta. Mas o que fez foi bem suficiente. É um dos poucos poetas, digamos assim, vivos. Setenta anos se passaram: Pessoa está aí. Visitamos as livrarias – e quem vemos? Três ou quatro: Drummond, Vinicius, Ele. Folheamos algum jornal onde se fala mais “à vontade” de poetas: quais são os caricaturados? Drummond e Pessoa. A camisa dos adolescentes traz um só estampado no peito: Pessoa. Ora, direis, mas já lá se vão setenta anos! Pois sim. Também concordo. Drummond estava ainda em pé há pouquinha hora; Vinicius (embora meio trôpego, é certo), idem; e Cabral mal se vai encantando. Isso é a pura verdade. Vai que o aplauso dos homens chega sempre um tanto atrasado, broncos que são eles, não é mesmo?
Mas o fato é que…
Quê?
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