“A ficção científica alcança o futuro, o passado, a mente humana. Ele alcança outros mundos e outras dimensões. É realmente tão limitado, então, que não possa alcançar a vida de humanos comuns que por acaso não são brancos?
Negros, asiáticos, hispânicos, ameríndios, personagens minoritários em geral têm sido visivelmente ausentes na maioria da ficção científica. Porque?”
O trecho acima faz parte do livro “Modern Masters of Science Fiction” de Gerry Canavan no qual, em apêndice escrito pela autora norte americana de ficção científica, Octavia Butler questiona porque a ficção científica é tão branca.
A ficção científica, como gênero que normalmente lida com conceitos associados ao futuro, ciência e tecnologia; sinaliza, devido a ausência de negros nas diversas produções, que este grupo não existe no espaço-tempo futuro. Octavia Butler constatou isso na década de 1980 e escreveu diversos romances e séries de ficção científica negra, sendo hoje considerada um dos grandes ícones do afrofuturismo.
Passado 40 anos, as produções de sci-fi mudaram. Personagens negros, mulheres e LGBTs se tornaram protagonistas, ganhando progressivamente mais espaço nas páginas dos HQs e nas telonas de filmes, como Mulher Maravilha e Pantera Negra.
A realidade, entretanto, não acompanhou as mudanças afrofuturistas da indústria cinematográfica na mesma velocidade. A simples ideia de que negros existem no futuro e de que o projetam segundo sua própria ótica continua sendo revolucionária quando partimos de uma realidade cujo genocídio da população negra continua a existir.
A título de exemplo, as recentes mortes de George Floyd nos EUA; de Miguel Otávio Santana no Recife; de João Pedro Mattos no Rio de Janeiro; e de tantos outros jovens negros vítimas do racismo estrutural, que se expressa, principalmente, pela violência policial.
Nos EUA, os negros são 40% da população carcerária e 23% dos mortos pela polícia. No Brasil, a situação é ainda mais alarmante, os negros são 67% da população carcerária e mais de 75% das vítimas em intervenções policiais. Entre os anos de 1980 a 2019, mais de 1,6 milhões de pessoas foram assassinadas – 70% das vítimas eram negras.
Mas, se o desenvolvimento da comunidade negra no Brasil depende de políticas sociais e econômicas que visem superar as heranças escravocratas, como pobreza, desemprego, falhas nos acessos a direitos básicos, tais como saúde e educação; o futuro do Brasil enquanto país rico e desenvolvido será impossível sem a superação do racismo estrutural.
Em relatório do Banco Mundial, Competências e Empregos – Uma Agenda para Juventude, de 2018, indica que, apesar do número médio de anos de estudo no Brasil ter crescido na última década, a produtividade por trabalhador não evoluiu muito. O documento apresenta dados de 2015, da Pnad, que indicam que mais de 11 milhões de pessoas de 15 a 29 anos não trabalham, nem estudam, ou seja, praticamente um em cada cinco jovens não está na escola, em treinamento ou trabalhando.
“Muitas vezes, o primeiro trabalho é determinante para o sucesso da trajetória profissional. Aqueles que ingressam no mercado informal têm menores perspectivas de prosseguir os estudos e/ou de desenvolver competências e habilidades requeridas pelo mundo do trabalho. Com isso, dificilmente conseguirão, ao longo da sua vida, ocupar postos de trabalho mais qualificados e com melhores salários”, avalia Wagner Santos, coordenador do núcleo de juventude do CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária.
Outro alerta é o de que a população brasileira está em trajetória de envelhecimento e, de que até 2060, o percentual de pessoas com mais de 65 anos passará dos atuais 9,2% para 25,5%. Ou seja, 1 em cada 4 brasileiros será idoso.
Considerando que a população negra representa mais da metade da população brasileira e, portanto, o maior percentual de jovens, a ausência de políticas direcionadas a este grupo, revela-se como um problema social e, principalmente, econômico para o futuro do país.
O Brasil não somente deixa de investir na juventude negra, como a assassina – seja diretamente através da violência e da brutalidade policial, seja negando direitos básicos à cidadania plena. Segundo estudo deste ano do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, de 1981 a 2018, a renda per capita do País cresceu 0,9%, enquanto a produtividade avançou apenas 0,4%.
“A produtividade média de um brasileiro típico vem se mantendo muito baixa há 20, 30 anos. É tão baixa que um trabalhador brasileiro leva uma hora para fazer o mesmo produto ou serviço que um norte-americano faz em 15 minutos e um alemão ou coreano, em 20 minutos” explica Sérgio Sakurai, professor da FEA-USP, em entrevista ao Jornal da USP.
Como o Brasil ‘existirá’ no futuro sem superar o racismo que o impede de formular políticas públicas com recorte racial, desenvolvendo assim a juventude que será responsável pelo crescimento econômico?
A racionalidade econômica não abarca o racismo e talvez não endogeneizar essa variável nos modelos econômicos seja umas das maiores falhas dos formuladores de políticas públicas que buscam a superação de uma estrutura produtiva primitiva.
Como explica o sociólogo Jessé Souza, a sociedade brasileira dificilmente avançará rumo ao desenvolvimento sem lidar com o racismo.
Está mais do que na hora de pensarmos em uma economia através de um olhar afrofuturista.
Publicado originalmente em 7 de junho de 2020
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