A casa de alvenaria ficava às margens de um dique. Periferia de Salvador. Paredes sem revestimento – os blocos aparentes – cobertura de telha de amianto, pouca ventilação porque a construção ficava num beco estreito, fétido, que se ramificava com diversas artérias escuras e úmidas, semelhantes. Por elas, corria uma brisa ardente – quando corria – que ia morrer no dique pejado de lixo e densas baronesas.
Mas, naquela casa, havia um aparelho de tevê. Daqueles antigos, porque o episódio foi há 30 anos. Na tela, às vezes, insinua-se a propaganda de uma emissora de rádio. Exibia trechos de clipes, canções internacionais de sucesso. Numa dessas inserções, estava lá um trecho do clipe da música Wicked Game, do cantor norte-americano Chris Isaak.
Aquilo magnetizou a família reunida no imóvel de dois cômodos.
A voz suave do cantor, a música melodiosa, o cenário em preto-e-branco, a modelo dinamarquesa Helena Christensen evoluindo, seminua, em câmera lenta, numa praia deserta, com coqueiros e ondas no mar. Na tela mágica, tudo inspirava paz, tranquilidade. Vá lá que, na letra, havia desconsolo, uma paixão, dúvidas sobre esta paixão. Mas naquela sala ninguém falava inglês. Todos se entregavam às agradáveis sensações do clipe.
Cena inesquecível: o clipe e a canção na tela mágica da tevê. Em volta, as asperezas da vida suburbana, o casario encarapitando-se pelos morros curtos, o esgoto correndo pelas vielas, lixo e pobreza em profusão.
Aquilo permitia entender o alcance profundo da televisão na vida das pessoas. Em meio às adversidades, aos dissabores, há a tela colorida que, fantasticamente, afasta as tristezas e traz tramas e dramas das novelas, contagia com a alegria artificial dos programas de auditório ou entusiasma com as vertiginosas grandes atrações. A tela captura o telespectador, que se sente gravitando em torno de suas alegrias, de suas dores.
A tecnologia, porém, trouxe muita novidade nas últimas décadas. A tevê convencional tornou-se atração para uma população com mais idade e menos escolaridade. As mídias sociais – são tantas opções que nem me arrisco a ficar mencionando – subverteram a lógica do telespectador passivo, que evoluiu, convertendo-se em um ativo consumidor, usuário, mostruário até.
Antes, todos se extasiavam com as celebridades na tevê. A grande inflexão é que, hoje, todo mundo tornou-se celebridade: basta cadastrar-se numa mídia dessas qualquer. E aí é só começar a postar fotos ou vídeos de almoços ou jantares, de festas, de viagens, de reuniões familiares, de atividades profissionais, de momentos de lazer… Enfim, de tudo. Igual às celebridades que, aliás, fazem o mesmo nas mesmas plataformas.
A televisão começou, décadas atrás, uma bem-sucedida simbiose entre tela e realidade que não apenas se aprimorou nos últimos tempos: subverteu-se, até invertendo as funções, tornando a fantasia realidade e vice-versa. De alguma maneira, já há gente que vive mais as mídias que, propriamente, a vida verdadeira.
Mas é bom ir finalizando essas penadas vadias que brotaram feito papo de botequim. Lá fora há sol no janeiro que estertora. Amanhã é sexta-feira e, como se sabe, a alma fica mais leve à medida que o dia avança. Então, é melhor arrematar o papo.
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