A insegurança alimentar é um dos fatores que mais põe em risco a vida humana na terra. E, no hemisfério sul, esse risco é agravado pois é onde a maior parte da população depende de uma agricultura de pequena escala para sobreviver e têm menor capacidade de enfrentar os eventos climáticos extremos. Chuvas excessivas ou escassas devem ser responsáveis por reduções significantes na produção neste contexto. A queda na oferta de alimentos pressiona a inflação, diminui o poder de compra da população e, em um ciclo vicioso, dificulta o acesso, sobretudo da população mais pobre, a alimentação de qualidade.
No último dado divulgado pelo IBGE, a inflação brasileira, medida pelo IPCA, teve alta de 1,06% em abril, acumulando variação positiva 12,13% em 12 meses. A inflação de 2 dígitos junto com a taxa básica de juros e a taxa de desemprego também de 2 dígitos, faz do Brasil e da Turquia os únicos países no mundo com os três indicadores neste patamar, de acordo com o Austin Rating. A inflação diminui o poder de compra, os juros altos dificultam o financiamento via tomada de crédito e aumentam o endividamento, e o desemprego reflete um mercado de trabalho em que o poder de barganha dos trabalhadores é reduzido.
Dentre os diversos grupos que compõem o indicador que mede a inflação, destaca-se a grupo de Alimentos e Bebidas cuja alta de preços apresenta trajetória acelerada deste de janeiro deste ano. Diversos fatores explicam a inflação crescente neste grupo: mudanças climáticas, guerra e pandemia. O cenário é preocupante, dado que a maior dificuldade de adquirir itens da cesta básica empurra a população mais pobre para situação de insegurança alimentar e fome.
No gráfico, é possível ver que a inflação de Alimentos começou a acelerar em janeiro deste ano depois de alguns meses de queda progressiva. O que aconteceu?
Existem diversas variáveis que influenciam os preços dos alimentos, como o preço dos combustíveis que impacta diretamente o custo do frete dos alimentos, especialmente em um País dependente da malha rodoviária, como o Brasil. O aumento do preço dos combustíveis, por sua vez, reflete a dependência dos combustíveis fósseis e a necessidade de se ampliar investimentos em renováveis.
Outro fator foi a pandemia da Covid-19 que prejudicou cadeias globais de transporte e provocou aumento no preço dos fertilizantes, um insumo importante que pesa no custo da produção agrícola. Vale lembrar que em um contexto de mudanças climáticas e perda da biodiversidade, implicará em pandemias mais frequentes, de acordo com o Fórum Econômico Mundial de maio de 2020 COVID-19 Risks Outlook.
Nesse contexto, discute-se hoje que o Brasil seja mais autossuficiente na produção de fertilizantes. O PL 191/2020, visando dar uma resposta a necessidade de autossuficiência na produção de fertilizantes, autoriza a mineração, mas também exploração para geração de energia, produção de petróleo e gás natural em terras indígenas.
Se este PL for aprovado, no entanto, os riscos ambientais são altos sobretudo para a região Amazônica pois junto com a mineração vem com outras formas de exploração de recursos naturais como o desmatamento ilegal na região.
E as mudanças climáticas?
No Brasil, o fenômeno climático La Ninã impactou a produção global agrícola e foi responsável por duas quebras de safra de milho na região sul. Já os estados das regiões Centro-oeste, Nordeste e Sul foram prejudicados pelo excesso ou falta de chuva. A consequência é que os alimentos foram maioria entre os 50 itens que mais subiram na inflação nos últimos 12 meses.
Em estudo recente publicado na revista Nature, os autores mostram que as colheitas estão, cada vez mais, sendo destinadas para fins alternativos à alimentação de pessoas – como, por exemplo, à fabricação de biocombustíveis, à indústria de processamento, à alimentação de gado. Eles explicam que, à medida que a renda aumenta, as pessoas demandam mais alimentos de origem animal ou mais convenientes (alimentos industriais processados).
Países em desenvolvimento e pobres, como o Brasil, dependem economicamente da exportação de comodities. O perigo é que, com o crescimento da demanda mundial por alimentos para fins diversos da alimentação humana, aumente-se a insegurança alimentar.
Neste mesmo estudo, os autores sugerem o aumento de colheitas cultivadas que serão utilizadas diretamente para alimentação da população, bem como o aumento de seus rendimentos e produtividade. A tarefa não é simples e precisa ser planejada minimizando o risco de expansão da fronteira agrícola via desmatamento ilegal. É preciso facilitar condições de produção para o pequeno agricultor e investir mais em agroflorestais.
Os mais impactados
O efeito da alta nos preços tem efeitos dramáticos sobre a população mais pobre que, no Brasil, é a população negra. Mulheres e crianças também estão entre os grupos mais vulneráveis ao efeito das mudanças climáticas sobre plantações e produção de alimentos, seja pela inflação gerada, seja porque a população feminina é sistematicamente discriminada no acesso a terra, água, sementes, fertilizantes ou crédito para produção.
Segundo David Beasley, chefe do Programa Mundial de Alimentos da ONU (WFP), em 2023, teremos uma escassez de alimentos. Enquanto em como os EUA, as pessoas podem deixar de consumir “Netflix” para comprar comida, em países pobres ou em desenvolvimento, isso não será possível. Essa crise terá potencial de causar desestabilização política, migração em massa e extremistas se aproveitarão da situação.
É importante destacar que a relação entre mudanças climáticas e inflação pode ser estudada como uma relação de bi causalidade, pois algumas medidas para conter a alta dos preços são contrários aos esforços de transição para uma economia de baixo carbono – é o caso do projeto de lei para mineração em terras indígenas. Já no lado dos combustíveis, por exemplo, enquanto a guerra em alguns lugares tem incentivado o investimento em geração de energia renovável; no Brasil, o debate tem girado em torno de subsidiar a gasolina e o diesel. Essas ações podem ser benéficas no curto prazo para controle inflacionário, mas tem um custo climático que virá logo depois. Adicionalmente, a transição energética via biocombustíveis precisa ser balanceada com a destinação de terras à produção agropecuária para alimentação de pessoas – mas a expansão simples de terras agricultáveis pressiona o desmatamento, principalmente em países pobres.
Talvez a sociedade tenha que rever alguns hábitos pois são muitos pratos para serem equilibrados e, não deixar nenhum cair, parece uma missão impossível. Todas essas dificuldades me fazem pensar se, por exemplo, é aceitável continuar destinando grande parte da produção de alimentos para alimentar gado, especialmente quando a pecuária tem um papel crucial nas emissões de gases estufas.
Quando se fala em transição justa muitas vezes não fica clara a complexidade que este conceito envolve. Neste artigo foi abordado apenas a questão alimentar, mas existem inúmeras outras que também precisam ser consideradas no ativismo climático.
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