Bolsonaro reina, mas não governa. Para além da república tuiteira do Bolsolavistão, o Presidente tornou-se uma persona non grata no governo que encabeça. A história deu a ele a maior (e quiçá única) oportunidade de emular um governante, mas preferiu reincidir nos desvarios destrambelhados de sua prole.
Ao fundar a “escola” desvairista, Mário de Andrade escreveu um prefácio interessantíssimo. Que, apesar de interessante, era inútil. Ao contrário do Mito, proclamado Messias, admitia: “Não é inspiração provinda de Deus. Maomé apresentava-se como profeta; julguei mais conveniente apresentar-me como louco”.
Divago. Não quero falar da poesia moderna paulista (até porque, sagaz, Mário de Andrade observa que “virá outro destruir tudo isso que construí”. O Mito, na máxima marxiana, ressuscitou o natimorto Desvairismo como farsa). Comecei a escrever com a ideia de resgatar um termo latino: populus.
Não é preciso ser etimólogo para perceber que é deste termo que deriva nosso “população”, “povo” ou, em sua forma negativa, “populacho”. “Todo o poder emana do populus”. A máxima é o parágrafo único do primeiro Artigo da Constituição brasileira. Coloca-nos no espectro das sociedades democráticas. Traz, na mesma frase, uma ressalva: “que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta magna carta”.
Na tradição, populus aparece em contraste à noção ateniense de demos. Deste último vem o nome que damos a nosso sistema representativo, demokratía, ou o “poder do povo”. Há, entretanto, uma diferença marcante entre populus e demos: o termo grego designa um povo de seres políticos, mais próximo em sentido à noção de cidadão; o latino, um povo abstrato, titular da soberania (ou do poder), mas que não o exerce (ou apenas “por meio de” alguém e “nos termos” de algum código).
O populus é aquele em nome de quem se age, se governa, se fazem leis, se celebram tratados. É politicamente relevante como representado e serve à mise-en-scène dos poderes, mas não se torna sujeito político. Precisa ser interpretado, mas não incluído. O professor belga Michel Grodent arremata: o populus é “menos um ator do que um instrumento”.
Voltemos à nossa via expressa para o papel de pária global. Bolsonaro tem a caneta poderosa. Não tem medo de usá-la para atender ao interesse do populus. “Não é para o meu bem. Nada pessoal meu”. Afinal, ele é o Messias do populus. É seu representante, nos termos da magna carta. Criou seu próprio populus: o patriota de bem, conservador e terrivelmente evangélico. Pouco importa a existência ou não deste ser. É dele que o poder deriva e em nome dele que é exercido.
Ao final, só consigo lembrar do cão de Belchior. Morreu sem razão, como morrerão milhões de brasileiros caso triunfe o desvairismo contemporâneo. Mas não são populus os que morrem. São cidadãos, são agentes, são mentes, são corações. São, acima de tudo, terrivelmente humanos. O Messias os remirá?
- Na contramão da discussão nacional, Feira aumenta tarifa de ônibus - 19/07/2023
- STF, direitos humanos e inteligência artificial - 30/03/2023
- Mais fortes são os poderes do povo - 28/03/2023