“Desencantamento do mundo” é um conceito usado não só na obra de Max Weber, mas compartilhado por boa parte do pensamento ocidental da primeira metade do século XX que buscava dar conta da modernização. Em linhas gerais, narra a passagem de um mundo místico anterior ao esclarecimento (tão presente ainda hoje nas artes que retratam a Europa medieval, seus dragões, feiticeiras e tudo o mais) a uma realidade regida pelas leis da razão, de preferência por intermédio da ciência. A modernidade, portanto, seria essencialmente a era da racionalização do pensamento e da ação, inclusive da política.
Se não após a Primeira, certamente depois da Segunda Guerra Mundial a romanização da razão-salvadora foi sendo desacreditada. Em um desenvolvimento intelectual que começa com a crítica Frankfurtiana do esclarecimento e da razão instrumental, passa por Hiroshima e Nagasaki e atinge seu ápice na desestruturação do Estado social acompanhada do pensamento pós-moderno, a narrativa modernizante-iluminista foi sendo atacada no Ocidente.
A crítica francesa pós-moderna talvez seja uma das mais contundentes. Jean-François Lyotard mostra em seu clássico “A condição pós-moderna” (1979) o quão “mistificadora” foi a razão iluminista, guia incontornável da modernidade: ela acabou por produzir as chamadas “grandes narrativas”, estruturas tão teleológicas quanto os mitos, que se arvoraram a dar conta de tudo que a humanidade fez, faz e está por fazer. Reivindicando por fonte a razão, são surpreendentemente semelhantes aos mitos.
A mais famosa delas: o marxismo, que começa com um sistema econômico (na época, o capitalismo), passa pela luta de classes e chega (seu telos) na sociedade sem classes. Sua “concorrente”: o liberalismo, que começa com o absolutismo/tirania, passa pelo processo revolucionário que permite aos indivíduos domar o poder, e termina no mercado-livre e na sociedade de indivíduos que se autorregulam. Início, meio, fim.
Essas narrativas já não eram mais críveis pra geração que, em 1968, viu a frágil estabilidade do pós-guerra se estilhaçar no ar. Lyotard e os franceses chamam isso de pós-modernidade. Bauman tem um nome talvez mais preciso: modernidade tardia, ou líquida, a radicalização do projeto modernista de renovar tudo, a todo momento, atingindo o próprio projeto modernista; não a sua ‘superação’.
Aqui do nosso pedacinho do mundo, na América do Sul, também resolvermos criar nossa própria narrativa mística. A história de Messias, que, contra o sistema corrupto, quase dando a vida por seu povo, enfrenta tudo e todos. Despreza a ciência (maior realização histórica do esclarecimento), os intelectuais e até os apenas cautelosos. É uma narrativa que envolve elementos tão contraditórios que dificilmente pode evocar sua origem legítima da razão iluminista: o Messias ungido é cria do sistema, foi por décadas a fio congressista, mas se proclama outsider; o salvador de todos diz ser a Constituição, mas prega (e nega) a ruptura do regime.
Diferente da crítica pós-moderna, a narrativa mitológica do Messias não é a radicalização da modernidade, ou mesmo criada em relação à razão iluminista. É fruto de um mundo re-encantando, onde existe intervenção militar constitucional, onde o congresso e o judiciário são irrelevantes e onde o Messias, com o Povo e com Deus, governa o cantinho da terra onde vírus e outras pestes não ousam penetrar. Não sob seu comando.
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